A conservação da paisagem
Já ia acima da aldeia do Sabugueiro, com vista para norte até terras de Trás-os-Montes, quando encontrei um velho camponês à volta dos campos ainda agrícolas daquele vale das terras altas da Serra da Estrela. Cansado da caminhada sempre a subir, fiz uma breve pausa e disparei para meter conversa: “paisagem magnífica que tem daqui!…” O homem levantou os olhos para o horizonte por alguns momentos, encolheu levemente os ombros e, ainda antes que dissesse alguma palavra, percebi-lhe na complacência amigável a sua visão do mundo feita do outro lado. Depois acabou por dizer: “Acha-a bonita? Se calhar é…”
Ficou claro para mim naquele momento a dualidade do valor da paisagem, que só é verdadeiramente apreciável pelos que não a vivem no quotidiano. Para os residentes a paisagem não é algo que se aprecie ou valorize, nem mesmo que se tenha em conta como realidade autónoma. Para os que nascem e vivem numa mesma região, a paisagem “não existe”, porque aquilo que veem diariamente não tem apreciável valor estético. É simplesmente o mundo que conhecem, onde vivem a sua vida de todos os dias, com os seus trabalhos, alegrias e tristezas. Não é bonito nem feio, é apenas o espaço onde vivem. Aquilo que veem quando levantam os olhos para o horizonte não é forma, mas antes conteúdo e função. Já para os não residentes, passantes ocasionais, moradores recém-chegados ou turistas, pelo contrário, a paisagem é geralmente apenas forma, e é apreciável do ponto de vista estético segundo os padrões culturais de cada um, de cada momento, e de cada sociedade.
A paisagem é na verdade um livro aberto para quem a saiba ler. Ela conta-nos muito sobre a natureza e evolução do território, sobre o trabalho do Homem, a sua cultura e tecnologia, a distribuição da propriedade e da riqueza, a história longínqua e mais recente… está lá tudo, mas estranhamente o que se vê é simplesmente a consequência daquilo que se não vê.
A paisagem entre nós, no sul da Europa, é sempre uma obra do Homem, porque há milhares de anos que por aqui não existem paisagens naturais. Por isso a paisagem é algo necessariamente dinâmico, não só porque responde às mudanças da natureza, como principalmente porque é consequência do quotidiano das sociedades humanas e do seu modo de vida sempre em evolução. E esta questão é crucial quando se fala de paisagem e se pensa na sua gestão: a paisagem é o resultado da acumulação das atividades do homem sobre o meio natural, e evidencia mudanças permanentes resultantes da vida das gentes. Uma paisagem que não muda é fruto de uma sociedade que também não muda, o que no século XXI corresponde a uma sociedade doente ou moribunda.
Com o desenvolvimento do turismo a paisagem passou ela própria a ter um valor económico importante, como já tinham antes os bons solos, a água, os minérios ou os peixes do mar, e por isso temos que aceitar que atualmente a paisagem é também um recurso económico em si mesma. Dizer isto, que é inegavelmente verdade, implica ter que aceitar que este novo “recurso” vive na dependência da forma como usamos os outros recursos. Se as outras atividades humanas, como a agricultura, a silvicultura, a pecuária, o urbanismo, os transportes ou a indústria, introduzirem alterações no aspeto de uma região, essas modificações podem valorizar ou desvalorizar a paisagem enquanto recurso usado pelo turismo.
E aqui começa a complicar-se a situação porque se criam conflitos de interesses entre setores económicos, com as atividades ligadas ao turismo (apoiadas nos paradigmas estéticos conservadores da intelectualidade urbana que se julga progressista), a tentar que a paisagem não mude, e alguns setores económicos da comunidade local a tentar modernizar as suas atividades, o que frequentemente obriga a alterações na paisagem. Entre nós este conflito de interesses parece de conciliação impossível, e os diversos atores em cena mostram-se frequentemente irredutíveis nas suas pretensões. Estão em confronto as duas formas diferentes de olhar a paisagem: como residente ou como estrangeiro. Boa parte das discórdias e dos conflitos que existem quando se fala na gestão da paisagem resultam exatamente desta diferença de visões entre quem constrói a paisagem quando desenvolve a sua vida diária, e quem acha que se deve manter um certo modelo de paisagem por preconceitos e opções estéticas, e por interesses económicos.
Há quem não tenha compreendido que a imutabilidade da paisagem tem como consequência a imutabilidade das atividades humanas, o que é simplesmente um absurdo no momento atual da nossa história. Se, como alguns pretendem, se tentassem conservar sem mudanças as paisagens, isso significaria manter o modo de vida do passado no tempo presente, o que seria inaceitável para os residentes, que são os construtores da paisagem. O mais interessante é que qualquer tentativa de impedir as mudanças na sociedade em nome da conservação da paisagem levaria as gentes a emigrar, e esse abandono das terras conduziria inevitavelmente a uma ainda maior mudança na paisagem. De resto, o caminho de uma sociedade evoluída não pode passar por manter no passado parte da população para que alguns outros a possam exibir aos turistas e disso tirar vantagem.
Mas se a paisagem é um valor económico significativo e espelha o que de bom ou mau fazemos ao território, há sempre que a ter em conta. Por isso julgo que se forem tomadas opções que valorizem as pessoas e as suas atividades económicas, e ao mesmo tempo protejam o ambiente e a qualidade de vida de todos nós, estaremos a construir paisagens diferentes das atuais, mas atrativas para quem vem de fora, e em simultâneo uma vida com futuro para quem está cá dentro.
E isto será assim tão difícil de compreender?
Este texto foi publicado no jornal Sudoeste n.º 178
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