quinta-feira, 18 de maio de 2023

O domínio colonial moderno

Quando eu era jovem, Portugal estava na esfera de influência da França: cultura, conhecimento, prestígio, era Sorbonne, música era francesa, e a primeira língua aprendida na escola era o francês. Depois vieram os de fala inglesa disputar esse domínio antigo da potência continental. Começamos a ter aulas de inglês na televisão (o Inglês da BBC), a música e o cinema passaram a ser esmagadoramente de origem anglófona a tal ponto que o resto do mundo parecia ter desaparecido, e a primeira língua aprendida na escola passou a ser o inglês. Aparentemente ninguém cantava ou fazia filmes na Alemanha, na Turquia, na Rússia, na Índia, no Egito, no México, ou em qualquer outro país do mundo. Chegamos ao ponto de muitos portugueses não gostarem de ver filmes ou ouvir música na sua própria língua, e se sentirem inferiores aos povos do norte, dando preferência ao que fosse importado desses países que consideravam “superiores”. Essa atitude contribuiu para deixar falir ou viver na penúria as nossas próprias empresas que (também por isso) pagavam salários baixos e criavam um mercado anémico que em nada estimulava o progresso económico e o desenvolvimento social do país. Como chegamos a isto? Terá sido só connosco?

O poder e a ganância, por vezes tornam-se de tal modo viciantes, que o domínio das elites sobre o seu próprio povo é insuficiente para a satisfação dos seus anseios. Por esse motivo desde há muito os poderosos usam de todos os expedientes para estender o seu domínio a outros povos, nem que para tal tenham que fazer a guerra. Esse processo de domínio de povos por estrangeiros tem variado, havendo imperadores generosos e respeitadores dos povos conquistados, como Ciro, o Grande, e outros, infelizmente os mais comuns, que esmagam feroz e continuadamente as gentes que têm a pouca sorte de lhes cair nas garras. Os últimos séculos foram férteis na criação desse tipo de domínio, com os europeus a esmagar os povos de quase todo o mundo, levando alguns à extinção absoluta e outros à submissão total. Esse domínio foi quase sempre aquilo a que genericamente se chamou de colonialismo.

No século XX o colonialismo clássico tornou-se ineficaz, caro e mesmo por vezes insustentável. O mundo bipolar da segunda metade do século instigava e patrocinava a revolta dos povos colonizados, e alguns dos colonizadores de espírito mais arguto e de maior capacidade de antever o futuro, como os ingleses, viram nessa perda de domínio direto das colónias, não um problema, mas antes uma oportunidade. Podiam perder o domínio político, administrativo e militar das suas antigas colónias, mas desde que mantivessem inalterada a relação económica e o controlo do rumo político das elites locais, essa mudança até poderia ser vantajosa. Percebeu-se que por esse processo seria possível vir a dominar muitos outros povos, mesmo que antes não tivessem sido colónias.

Para conseguir esse controlo subtil investiram na promoção da sua língua e cultura, procurando atrair para elas os povos que queriam dominar, e muito especialmente as suas elites. Estimularam e patrocinaram a ida de jovens quadros dos países mais pobres para as escolas e universidades do Reino Unido, e difundiram até ao limite os padrões estéticos e culturais do mundo anglófono. Era preciso que os jovens dos países mais pobres se embebessem na cultura dos países de língua inglesa, que fossem falantes dessa língua, e que esses “dons” fossem tomados, não como evidência de traição aos povos nacionais, mas antes como elemento de prestígio potenciador da ascensão social e económica. Outras nações europeias com passado colonial tentaram com menor sucesso a mesma receita. Portugal, no seu duplo estatuto de colonialista, mas também de dominado por potências maiores, teve nessa matéria um desempenho medíocre.

A receita inglesa funcionou tão bem que permitiu o controlo geral das suas antigas colónias, a exploração dos seus recursos naturais, da sua mão-de-obra e dos seus mercados. Como se percebeu que o destino dos povos podia ser condicionado através do controlo da sua cultura, da língua e da informação que lhes chegava, alargou-se essa forma de dominação a países que não eram colónias, mas cujas elites eram permeáveis à troca dos valores e interesses nacionais pelos de outros países. Foi assim que neste enorme tabuleiro de xadrez que é a geopolítica mundial, triunfou uma nova forma de conseguir o domínio dos povos e dos seus recursos: quando os povos começaram a preferir ouvir música e ver filmes numa língua que não a sua, e quando se sentiram inferiores aos estrangeiros em vez de sentirem o orgulho na sua diferença, na sua liberdade e independência, estavam realmente controlados, ainda que sem se aperceberem disso.

Menos agora, que a crise de 2008 abriu os olhos a muita gente, mas ainda hoje falta a alguns de nós o amor-próprio que nos faça sentir, pelo menos, tão bons como qualquer outro povo do mundo. No entanto para muitos de nós a submissão aos interesses dos estrangeiros, a entrega dos nossos recursos fundamentais às empresas dos outros, a forma ostensiva com que governantes de outros países decidem sobre os nossos assuntos, tornam-se cada vez mais inaceitáveis, e sentimos que precisamos de governos que governem na defesa dos portugueses, sem hostilizar ninguém, mas também sem viver na obediência aos interesses dos outros.

A vontade de defender os interesses e a cultura de cada povo, e mesmo a sua dignidade, tem despertado nacionalismos populistas demagógicos, que fazem cada vez mais investidas oportunistas. O difícil neste momento da nossa História será conseguir governantes capazes de defender os interesses de Portugal e dos portugueses, fugindo à obediência cega dos poderosos do Ocidente que nos manipulam, sem que, no entanto, se mostrem contra seja lá quem for. Dito de outro modo, é preciso ter um governo que não ande às ordens dos estrangeiros, mas também não esteja contra nenhum deles, e com todos consiga trabalhar em benefício do nosso povo. Certamente que se podem encontrar complementaridades vantajosas para a nossa relação com todos os povos do mundo, numa lógica de respeito mútuo, não deixando que nos imponham a sua vontade, mas também não tentando impor a nossa forma de pensar aos outros.

Se não me enganar, essa será a nova via para a relação entre os países do mundo que mais adeptos vai ter nos próximos anos. Vamos a ver se também nessa caminhada ficamos para o fim…  

 

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

 A Nova “Nova Rússia”

A Europa está cheia de estados que incluem povos diferentes, e isso percebe-se pelas línguas que falam e pela cultura e história que possuem. A Espanha, a França, ou o Reino Unido, (que por vezes está mais desunido que unido, pelas divergências com a Irlanda do Norte e com a Escócia) têm problemas internos com povos que se sentem minoritários ou mal representados no poder. Quem aprecie a evolução das fronteiras dos estados europeus verá grandes mudanças verificadas ao longo dos séculos, com o surgimento e extinção de países e com as fronteiras em mudança constante. Não há muito tempo a antiga Jugoslávia desmembrou-se em diferentes estados após uma guerra prolongada e brutal, a antiga Checoslováquia deu origem a dois países, etc.. Portugal é claramente uma exceção nesta matéria.

Se a correspondência entre um estado e uma comunidade cultural e linguística homogénea é difícil de encontrar na Europa, ainda é mais difícil de achar em África, onde as fronteiras existentes foram quase sempre traçadas por nós, europeus, frequentemente com régua e esquadro, como quem reparte um bolo entre convivas gulosos. Quando se traçaram essas fronteiras do interior de África atribuindo a sua posse a diversos estados europeus, na maior parte dos casos nem sequer se sabia o que por lá existia, se eram territórios montanhosos, planícies, lagos ou rios… e ainda menos que povos foram repartidos pelos diferentes “senhorios europeus”, e que povos, por vezes de rivalidades ancestrais, foram incluídos na mesma colónia europeia. Muitas das guerras que existiram e existirão em África tiveram e terão ainda esta origem. É quase inevitável que assim seja, e a responsabilidade foi indiscutivelmente do colonialismo brutal que escravizou os africanos e lhes perturbou o futuro. Bem podemos tentar branquear a nossa responsabilidade neste processo, dizendo que levámos para África a “civilização” e o “desenvolvimento”, tal como antes dizíamos ter levado a “salvação das almas” àqueles que escravizávamos e vendemos como gado, mas o papel da Europa Ocidental no mundo nos últimos séculos tem sido efetivamente vergonhoso.

 A Ucrânia, tão falada ultimamente, é também ela, um exemplo da situação de fronteiras voláteis impostas por poderes estrangeiros, e de uma integração forçada daquelas terras e gentes em diversas potências da região. A sua situação de “fronteira” entre vizinhos poderosos não só determinou a sua inclusão em diferentes reinos, impérios ou senhorios ao longo dos séculos, como influenciou mesmo o nome dado àquele território: “Ucrânia”, em russo “Ukraina” e em polaco antigo “Ukrainian”, significa precisamente “fronteira”.

Ao contrário de Portugal, que no século XIII tinha as suas fronteiras definidas no essencial, o território a que hoje chamamos “Ucrânia” andou de “mão em mão”. Depois de ser dominada pelos mongóis, foi posse dos senhores da Polónia, da Lituânia, da Áustria-Hungria, do Império Otomano, e dos Czares da Rússia. Nos séculos XVII e XVIII teve um breve período de domínio dos cossacos (eles próprios homens livres de origem russa ou ucraniana) e por fim o território e as suas gentes foram integrados no Império Russo até à sua queda. Pouco tempo depois foi criada a Republica Socialista Soviética da Ucrânia, e nela foram incluídos territórios com populações de origem russa e outros com gentes mais do oeste, a que hoje chamamos ucraniana. Não havia problema, porque ao tempo se pensava que a URSS iria durar para sempre, e por isso, mesmo territórios que tinham sido russos nos últimos séculos e eram ocupados por populações russófonas, poderiam se incluídos naquela unidade administrativa. Assim, quase toda a região que já no tempo dos Czares se chamava de “Nova Rússia” ficou sob administração da República Socialista Soviética da Ucrânia. A situação da Crimeia é um tanto diferente, porque nunca pertenceu à Ucrânia e só em 1954 foi integrada na República Socialista Soviética da Ucrânia por decisão de  Khrushchov, ele próprio ucraniano, para facilitar a administração do território. Mas inesperadamente o mundo mudou, e quando em 1992 a URSS se fragmentou e a Ucrânia se tornou independente, os russos nela existentes passaram a comunidade minoritária dentro do novo estado.

A relação entre russos e ucranianos era geralmente tranquila, e ainda mais fraterna era a relação entre os russos que ficaram integrados na Ucrânia e os outros ucranianos falantes de ucraniano, tanto mais que são línguas bastante próximas. E foi assim até que poderes externos vieram criar a intriga e estimular o ódio… Hoje tentamos fazer esquecer que foram os ocidentais a promover o golpe de estado que afastou o presidente eleito democraticamente na Ucrânia (Viktor Ianukóvytch), o que veio criar a guerra civil que durou oito anos, com milhares de mortos e deslocados a que a comunicação social do Ocidente não deu importância. Na verdade o novo poder pró-ocidental da Ucrânia nasceu de um golpe de estado contra um poder democraticamente eleito, mas no ocidente fez-se vista grossa ao atropelo à legalidade e à democracia. Em boa verdade a democracia só é importante se nos der jeito…

A “Nova Rússia” é um nome histórico usado na época do Império Russo para a região ao norte do Mar Negro que é hoje na sua maioria a parte sul e leste da Ucrânia. Foi formada como uma província imperial da Rússia em 1764 e por diversas vezes incluiu também a região moldava da Bessarábia (grande parte corresponde à Transnístria moldava atual), o litoral norte do Mar Negro (as atuais províncias ucranianas de ZaporizhiaKherson), o litoral do Mar de Azov, a região tártara da Crimeia, as estepes Terek–Kuma ao longo do rio Kuban e a região circassiana.

Agora, tudo leva a crer que a Rússia quer reabilitar esta unidade cultural e linguística de maioria russa pela conquista de parte da Ucrânia e, eventualmente pela integração da Transnístria, que já é na prática autónoma da Moldávia.

O que parece certo é que se a Ucrânia não tivesse tido o golpe de estado a favor do Ocidente, e se em consequência não tivesse mostrado vontade de entrar na OTAN, se tivesse cumprido os acordos de Minsk, se tivesse respeitado as populações do Donbass, esta guerra, que é evidentemente algo de horrível e condenável como todas as outras guerras que existem no mundo, nunca teria existido. E com paz e cooperação as populações de toda a região viveriam melhor e poderiam ter um futuro mais sorridente. Também esta é mais uma guerra criada por interesses estranhos às pessoas que, quer falem russo ou falem ucraniano, todos os dias se levantam para trabalhar e que querem criar os filhos em paz e sossego.

Mas os senhores do mundo, que já têm para si riquezas incontáveis, querem sempre mais, e não se importam com o sofrimento dos povos. É quase sempre assim.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

 Operação Angola

Que fique claro: não sou angolano, nunca fui a Angola, não tenho nenhum interesse económico (ou outro qualquer que seja) relacionado com Angola. Mas já sou velho bastante para ter visto muitas vezes coisa semelhante ao que vi agora quando das eleições angolanas de agosto último. Sei, ou julgo que sei, que infelizmente tem havido muita corrupção em Angola, como de resto em outros países africanos e mesmo europeus (nós nesse aspeto não podemos atirar pedradas…), o que à partida me leva a duvidar da isenção e transparência da vida política nesses países. No entanto…

Assim que vi os jornalistas portugueses, ainda durante a campanha eleitoral angolana a dizer repetidamente que havia nos cadernos eleitorais de Angola muitos nomes de pessoas já falecidas, percebi logo que iam preparar marosca. Quem tenha experiência de olhar com atenção as voltas do mundo, via de imediato que a referência à existência de nomes de falecidos em cadernos eleitorais visava criar a desconfiança sobre a isenção das eleições angolanas. E é claro que aquilo, dito com o ar de quem está a denunciar uma irregularidade grave, deixa, mesmo as pessoas de boa-fé, a pensar que as eleições possivelmente vão ter “tramoia”.

Como todos saberão, também entre nós e um tanto em todo o mundo, os cadernos eleitorais não são atualizados com muita frequência e por isso, sempre que morre alguém, o nome dessa pessoa falecida continua a constar dos cadernos eleitorais. No entanto, como se sabe, isso não constitui problema algum. Em Portugal por volta dos anos noventa, havia quase 20% de nomes a mais nos cadernos eleitorais, que eleitores em idade de votar. Como também se sabe o sistema não permite que alguém vote pelos falecidos, logo isso apenas afeta o valor da abstenção que fica a parecer maior que na realidade é. Portanto, ao contrário daquilo que era sugerido por alguns jornalistas portugueses, o facto de haver nomes de falecidos nos cadernos eleitorais não configurava nenhum motivo de preocupação ou suspeita sobre a qualidade do futuro ato eleitoral.

Eu já vi isto muitas vezes. É a primeira fase de uma operação preparada criteriosamente para interferir nos destinos de um outro país.

Passada esta primeira fase da “operação” veio, como eu imaginava, a fase em que o líder da oposição levanta dúvidas sobre o processo eleitoral afirmando que tem elementos (que acabará por nunca exibir) que o levam a acreditar que houve fraude eleitoral. Como sabemos, mesmo a maior mentira, se dita com convicção e com ar sério, passa por ser verdade, ou pelo menos cria a dúvida. Pede a recontagem dos votos, pede a análise das atas das assembleias eleitorais, etc., etc., mas nunca exibe provas de algo que pudesse alterar significativamente o resultado das eleições. Esta é a segunda fase da operação.

No caso de Angola não interessava criar violência nas ruas, porque importava dar credibilidade à oposição (depois de uma longa guerra civil, era importante mostrar que a oposição é séria e confiável, e pode ser governo), e por isso não se atiçou a população com agitadores pagos ou engajados para o efeito. Noutros casos essa é a terceira fase da operação: agitação nas ruas, tumultos e, se necessário for, feridos e mortos. Mas neste caso jogava-se numa estratégia de médio prazo, ou seja, é um “trabalho” para dar frutos em eleições que se seguem e não imediatamente, e também por isso não se instigou a desordem e a violência.

A fase seguinte da operação é ainda, e mais uma vez, da responsabilidade da comunicação social, mas agora centrada no apoio de “comentadores” aparentemente “sábios e sensatos”, residentes habituais nos canais do sistema ou convidados especialmente para o efeito. Estes começam a afirmar, embora sem qualquer tipo de prova, que sabem de fonte segura que a oposição ganhou as eleições, e logicamente que houve fraude eleitoral, e aos poucos serão os próprios jornalistas a afirmar ou sugerir a fraude e a desacreditar os resultados das eleições. Fica a suspeita, que para alguns se transforma em certeza absoluta, que não há legitimidade no poder eleito, o que o fragiliza internamente face à população eleitora, e externamente face à opinião pública internacional.

Mais tarde grande parte da opinião pública ficará convencida que o poder em Angola não é legítimo e ficará capaz de aceitar um eventual golpe de estado que deponha o governo em exercício, ou a aplicação de sanções que algum governo estrangeiro lhe queira impor. A desconfiança criada face ao processo eleitoral e ao partido vencedor, ajuda mesmo a denegrir a imagem dos governos ou personalidades que apoiem esse governo. Esta é a quarta fase da operação: conseguir convencer a comunidade que o poder estabelecido é desonesto e fraudulento, e quem o apoiar não é boa gente. Neste ponto do processo já se ultrapassa qualquer tipo de racionalidade, e apela-se à emoção (como a clubística, gosta-se ou não se gosta, e pronto).

Segue-se a tarefa que consiste em repetir mil vezes, ao longo dos anos, aquilo que é, pelo menos no essencial, mentira, para que essa mentira se consolide na opinião pública como se fosse verdade. É a sexta fase da operação: consolidar a mentira como se fosse verdade. A partir dessa fase quem contrariar a “nova verdade” é suspeito de ser pouco inteligente ou estar conluiado com os “governantes ilegítimos”. A autocensura entra em ação, porque todos nós queremos estar de bem com a comunidade, e mesmo quem tenha inicialmente dúvidas, acaba por se alinhar com a maioria e ajudar a propagar a “nova verdade” que é efetivamente uma mentira consolidada.

A última fase do processo consiste no assalto ao poder, preferencialmente por via eleitoral, contando mais uma vez com o apoio imprescindível da comunicação social, e com a participação de técnicos (especializados em psicologia coletiva e manipulação de massas). Se a comunidade insistir em dar a vitória eleitoral a quem não nos interessa, então poderá ser de forma violenta através de um golpe de estado ou, em último caso, através de uma invasão com base em qualquer pretexto que na altura se invente. Este processo tem acontecido em inúmeros casos, e é sobretudo aplicado em países que têm recursos naturais ou posição estratégica invejável. Parece ser também o que está em preparação para Angola. Angola, se calhar para infelicidade dos angolanos, é uma terra rica de recursos, e esses recursos são alvo de cobiça de grandes potências.

No entanto…

Eu, evidentemente, não estive lá para ver, mas esteve lá uma missão da CPLP, além de muitas centenas de observadores de organizações internacionais, como representantes da União Africanada Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), e do Centro Carter dos Estados Unidos, e não vi ninguém a afirmar que tivesse havido fraude eleitoral.

Houve também observadores independentes angolanos que não detetaram qualquer irregularidade significativa, e isto, além do órgão próprio do estado angolano (a Comissão Nacional Eleitoral), que também não encontrou nada que leve a duvidar que as eleições foram livres e justas. Além de tudo isso, Angola tem tribunais e, se existirem provas de irregularidades irão apreciá-las e decidir em conformidade.

A última fase da operação, no caso de Angola

Daqui a uns anos já quase ninguém se vai lembrar exatamente do que aconteceu, mas a ideia que vai prevalecer na sociedade angolana e internacional é que o poder em Angola não é legítimo e certamente manipula os resultados eleitorais. Se houver novas eleições, e de novo se montar uma campanha deste tipo (o que garantidamente vai acontecer), já a opinião pública angolana e internacional estarão disponíveis para desconsiderar o governo, o partido que o apoia, e os seus aliados, e aceitar uma mudança qualquer de poder, mesmo que surja de forma ilegítima.

É assim que trabalha o ocidente. Por isso muitos povos do mundo acham que nós, os ocidentais, não somos de confiança. Por isso muitos povos do mundo recusam o sistema eleitoral a que chamamos “democracia”: sabem que ela pode ser subvertida por técnicas de controlo da informação e manipulação da opinião pública. E colocar os cidadãos a votar mesmo em quem os vai roubar e trair.  

A democracia é efetivamente, ainda que com os seus defeitos, o melhor sistema político que conheço, mas para que seja efetiva é necessário que haja honestidade e verdade nos agentes que nela interferem e que não haja controlo da informação e manipulação das pessoas de forma ilegítima. Quando assim não é, a democracia é apenas uma forma de controlo dos países como outra qualquer.

 

domingo, 28 de agosto de 2022

A peste a guerra e a fome

A pandemia recente fez lembrar as antigas epidemias que dizimavam a população do mundo depois de períodos de crescimento demográfico lento. Era como se sempre que a população humana crescia em demasia, a natureza (ou algum deus ou demónio) viesse colocar as coisas no seu devido lugar e reduzir o número excessivo de homens. É claro que apesar de ter provocado alguma mortalidade, felizmente as consequências desta pandemia não se aproximaram de algumas das grandes e aterrorizadoras razias do passado. Mas como as outras grandes epidemias da história também esta vai cedendo ao passar do tempo, e se não se extinguiu de todo, pelo menos tornou-se menos agressiva e mortal, e mais cedo ou mais tarde vai acabar por passar.

Depois do auge da preocupação com a pandemia, veio a guerra na Ucrânia. Na verdade não há dia nenhum em que não haja guerras no mundo, mas longe de nós e com fraca cobertura mediática, e muitas vezes nem nos lembramos delas. Mas é claro também que a guerra na Ucrânia tem uma importância especial por ser uma peça importante na evolução geopolítica mundial na transição que se adivinha entre o mundo unipolar que nos tem governado, e o mundo multipolar que está para vir. Pela sua proximidade, pela importância para o futuro das relações entre os países do mundo, e sobretudo pela cobertura anormalmente extensa e emotiva  que dela se tem feito, esta guerra tem algo de muito marcante para todos nós.

Vivemos assim nos últimos anos num mundo de insegurança, seja pelas preocupações (por vezes exacerbadas e quase doentias) com a saúde, seja pela “guerra na Europa” que ao que dizem (sobretudo para nos assustar), pode descambar num conflito nuclear final. Se em relação à pandemia todos os esforços e dificuldades que passamos eram consequência da necessidade imperiosa de combater o “mal” em forma de doença impiedosa e mortal, agora com a guerra, a narrativa mantém-se: esta é uma luta do “bem contra o mal”, e assim se explica o mundo a pessoas tratadas como crianças ingénuas. Mas a insegurança e a ideia de combate ao “mal” estão estabelecidas.

O que não se explica é que depois da peste e da guerra, provavelmente virá a fome. Mas neste caso não virá como consequência direta de qualquer delas (peste ou guerra), nem por fatalidade histórica, mas antes como método estudado para concentração de poder e de riqueza na mão dos que já hoje são escandalosamente ricos. Desta vez, com o artifício de uma crise que eles próprios estão a criar, parece que pretendem assumir o controlo de recursos vitais para qualquer sociedade, como a energia (sobretudo as novas formas de energia), a alimentação e a água.

Deixem-me adivinhar: como consequência das alterações climáticas, da escassez de sementes disponíveis no mercado, da dificuldade de comercializar os adubos russos, e mesmo da redução forçada das áreas agrícolas que está em curso em alguns países da Europa, no próximo ano teremos escassez de alimentos em vastas áreas do mundo. É claro que numa economia de mercado os preços vão subir, e quem conseguir pagar passará bem, mas quem for pobre…

Claro está que a recessão do “Ocidente”, que já começou, se vai propagar a outras regiões, e a inflação galopante, que se pode aproximar em alguns países ricos de valores inimagináveis ainda há alguns anos, ou seja, para perto dos 20% ao ano, vai retirar o poder de compra sobretudo às classes baixa e média. As empresas que vão falir serão compradas por “tuta e meia” pelas que pertencem aos grandes grupos económicos, e assim se concentrará mais a economia e a riqueza nas mãos de cada vez menos.

Também o controlo da água, enquanto recurso vital está na agenda dos que fomentam e conduzem a crise que temos ainda apenas a nascer. A água é um bem fundamental, e quem a controlar tem os povos inteiros na mão. Sabemos bem como um tanto por todo o mundo, mas também em Portugal, se tenta retirar o controlo da água do setor público, sempre com o discurso cínico e enganador da falta de eficácia, sobre os ganhos de produtividade, sobre as perdas e roturas dos sistemas… Agora, com a seca e a falta de água que já se vai sentindo, sugere-se às autarquias que subam os preços da água, para que as pessoas aprendam a poupar o precioso líquido, mas vários autarcas já se estão a recusar a aumentar os preços da água aos seus munícipes. Eles ou sabem ou intuem que esse passo faz parte de um processo pensado para facilita a privatização da água. Sendo cara, uma empresa privada pode acenar com a baixa de preços, e assim cativar a opinião pública para o processo de subtração de mais um bem coletivo dos portugueses por uma entidade privada (e no futuro estrangeira). Cuidado portugueses…

 

sexta-feira, 15 de julho de 2022

As guerras da minha infância

Quando eu era miúdo já havia aquilo que hoje chamamos “bullying”, só que nesse tempo não se chamava assim, nem se ligava muito. Na minha escola havia uma mão cheia de repetentes matulões que mandavam e desmandavam nos mais pequenos.

Entre esses matulões mais fortes e mais velhos destacava-se o “América”, que andava sempre de chapéu à “cowboy” e tinha a mania que podia fazer tudo o que lhe passasse pela cabeça. Se lhe apetecesse aumentar a sacalhada de berlindes e abafadores roubados aos pequenos bastava dizer: “ó puto, passa para cá esse ‘guelas’ de vidro”, e o miúdo pequeno logo lhe estendia a mão trémula com o berlinde pretendido.

Havia um outro a que chamavam “Russo”, talvez por ser de tez clara. Esse impunha-se também aos mais pequenos e, sempre que possível, e aproveitava-se deles para seu próprio bem. Se pedisse a um dos pequenotes uma peça de fruta ganhava-a de certeza, a menos que o alvo em questão fosse um dos protegidos do “América”, porque nesse caso logo o chamava como protetor. De resto era assim no geral: cada matulão tinha a sua corte de putos fracotes que o bajulavam para receber a proteção do respetivo calmeirão.

Havia outros miúdos encorpados mas que davam menos nas vistas. O “China” era forte, mas geralmente não se metia com ninguém. Em vez de roubar aos outros as caricas, era ele mesmo que as fabricava com as cápsulas das garrafas de cerveja cheias de chumbo fundido, o que lhes dava um peso extra único. Nas corridas de caricas as dele nunca eram deitadas para fora da pista pelas dos outros e, bem pelo contrário, as que chocassem com as dele é que saíam borda fora e tinham que recomeçar do início. O “China” trocava as suas preciosas caricas e outras coisas que fabricava por berlindes e peças de fruta, e tinha assim sempre tudo o que queria.

Nessa escola passavam despercebidos outros grandalhões, como o “Índio”, morenão com quem ninguém se queria meter, mas que tinha problemas suficientes na sua vida para que também não se fosse meter com os outros. Como o “Índio”, havia outros rapazolas mais fortes com os quais mesmo os grandalhões mais temidos não queriam problemas, e que assim iam passando quase despercebidos.

Houve muitos episódios que me vêm à memória com estes personagens e, evidentemente com muitos outros, porque aquela escola tinha quase duas centenas de alunos. Num inverno, por exemplo, o “Russo” andou doente. Andava tão definhado, magro e pálido que até metia dó. Ora, está-se mesmo a ver que o “América” se aproveitou da fraqueza do adversário de sempre para o amesquinhar o mais que pode. Os protegidos do “Russo” abandonaram-no e juraram fidelidade ao “América”. Por esse tempo quem não fosse fiel ao todo poderoso da escola tinha que sofrer as represálias desse grandão que agora mandava sozinho. Claro está que os outros calmeirões, como o “China” e o “Índio” não fizeram muitas ondas, tentaram que ninguém se metesse com eles, e deixaram o tempo correr. Eles sentiam que estavam a crescer depressa e que estavam cada vez mais fortes, e por isso o tempo era seguramente seu aliado.

Mas a doença do “Russo” passou, ele ganhou de novo cores e músculo, e reforçou a sua vontade de não andar às ordens de ninguém. Para se tornar mais respeitável especializou-se na pedrada. Era certeiro com o monte de calhaus redondos que trazia sempre na sacola, e arremessava-os sem falhar a uma distância enorme. Por isso era temido entre todos os miúdos da escola. Mas o “América”, muito embora tivesse medo de se meter com o “Russo” por causa das suas pedradas mortíferas, foi arranjando sempre formas de o irritar e prejudicar. Apanhou a jeito um antigo amigo do “Russo”, o “Tótó”, que era um daqueles putos que tinha sido em tempos como um irmão para o “Russo”, mas que se deixava influenciar com facilidade, e incitou-o contra ele. Deu-lhe paus e pedras e até uma navalhinha de ponta aguçada, e foi-lhe dizendo: “não tenhas medo dele, que eu estou aqui e vou-te dando as armas para te safares…” Mas o “Russo” deu pela marosca e quando viu o “Tótó” a preparar-se para o atacar pelas costas, foi-se a ele. Claro que ficaram os dois cheios de negras, muito mais o “Tótó” que não tinha a força de calmeirão do “Russo” nem disparava as suas pedradas certeiras.

Ao ver a bulha, o “América”, ao longe, ia rindo discretamente daquilo que tinha feito ao “Tótó” e ao “Russo”, enquanto os pequenos seguidores, que queriam continuar nas boas graças do “América”, gritavam histericamente impropérios contra o “Russo” numa roda quase perfeita em torno da briga. A todos o “América” ia vendendo paus e pedras, e até navalhinhas de ponta aguçada. De longe o “China” e o “Índio” e alguns outros piscavam o olho ao “Russo”. Estavam certamente a tramar alguma contra o “América” e seus pequenos acólitos, para que deixassem de vez de mandar sozinhos…

Acabei por sair da escola e nunca cheguei a saber como acabou o conflito.

sábado, 21 de maio de 2022

 O novo mundo que aí vem

Há anos que se percebe que o Ocidente vai perdendo progressiva e discretamente a sua hegemonia esmagadora no mundo, mas os contornos, a orientação e a velocidade da mudança que se vem anunciando têm sido muitíssimo vagos e de rumo difícil de determinar. Agora, com a guerra na Ucrânia tudo se acelera, e aos poucos uma nova paisagem começa a surgir como se estivesse encoberta por nevoeiro que se dissipa. Era bom de ver que o domínio da Europa Ocidental primeiro, e do “Mundo Ocidental” mais tarde, sobre todos os povos da humanidade, não poderia eternizar-se, e apesar do ainda colossal poderio económico, tecnológico e militar deste grupo de países, novos poderes e alianças se levantam no horizonte. É bom lembrar o passado para compreender o presente e olhar mais lucidamente o futuro, por isso…

Nos últimos quinhentos anos a África foi quase totalmente conquistada, as suas gentes, que passaram a escravos ou servos, foram tratadas como sub-humanas; alguns dos povos das Américas foram completamente extintos, enquanto outros foram reduzidos à servidão, com as suas terras apropriadas por estrangeiros aos quais tiveram que passar a pagar tributo e vassalagem; a Ásia viu civilizações multimilenares esmagadas pelo colonialismo ou dominadas por “protecionismos” aceites à força da ameaça das armas; os povos da Oceania, mortos uns, dominados outros… A todos impusemos a nossa religião, o nosso modo de viver e de pensar, a nossa forma de exercer o poder, mas cinicamente fomos dizendo de nós para nós mesmos e para quem nos quisesse ouvir, que era pelo seu bem, pela salvação das suas almas, pelo seu desenvolvimento, pela sua liberdade... E os que não se queriam converter ao que nós decidimos que era “o seu bem”, então foram convertidos à força sob pena de destruição e de morte. E espalhamos como bênção ou praga pelo mundo o nosso Deus, o nosso modo de possuir os bens e a terra, de mandar nas pessoas, a nossa necessidade de consumir, a nossa forma de governar. Onde o Ocidente chegou, chegou também a ruína, a escravidão, a morte, a guerra, a humilhação e a miséria, e nada deu de bom aos povos do mundo sem que fosse por interesse ou vantagem para si mesmo. Nós tentamos esquecer e fazer esquecer o passado, mas os povos dominados do mundo não esquecem.

Via-se bem que povos de reinos e impérios seculares ou milenares, muitos dos quais durante todo esse tempo sempre caminharam à frente do Ocidente na tecnologia, na economia, na organização social e estatal, nas artes, no conhecimento, não iriam permitir por muito mais tempo este vexame da dominação. Evidentemente esta relação teria que mudar.

O esmagamento cultural das nações pelo Ocidente foi especialmente desrespeitador, alterando as leis locais, censurando as práticas ancestrais, proibindo as religiões tradicionais, e impondo, sempre impondo, os seus valores, a sua forma de ver o mundo, a sua moral. Esmagou os diferentes povos estrangeiros que encontrou no mundo, mas esmagou igualmente as diferentes culturas das diversas regiões dos seus próprios países. Foi mais que a imposição do padrão da civilização ocidental ao mundo, foi a imposição do padrão de certas elites ocidentais a todos, incluindo às regiões e comunidades minoritárias dos seus próprios países. Mas um tanto por todo o lado, dentro e fora da Europa e do Mundo Ocidental, se começou a notar a retoma das línguas regionais antes proscritas e em decadência, dos valores culturais das gentes, e ressurgiram os perigos dos nacionalismos, motivados em parte pela afronta do esmagamento das tradições ancestrais. E agora por todo o mundo aumenta esse gosto pela tradição, pelo folclore, pelas especialidades locais, pelo ancestral. Claro que a riquíssima multiplicidade cultural da humanidade não iria permitir o esmagamento definitivo das culturas e tradições dos seus povos. Percebia-se que algo teria que mudar…

A globalização económica do mundo, com vantagens reais em alguns aspetos, atingiu o absurdo e a irracionalidade ambiental, guiada exclusivamente pela procura do lucro, mas com desprezo total pelas pessoas, pelo seu bem-estar, pelo seu modo de vida, pelo ambiente da Terra e pelo futuro. E vê-se agora que ela, a globalização, contrariamente ao que se disse, nunca foi pensada nem nunca serviu para irmanar e desenvolver os povos, mas antes para dar vantagem a alguns grupos sobre todos os demais. Também se percebe que nesta matéria as mudanças serão inevitáveis…

O mundo unipolar dominado pelo Ocidente parece ser cada vez mais questionado e estar a entrar em acelerada erosão, e pode dar lugar a um outro mundo, talvez de novo bipolar ou mesmo multipolar. Essa exagerada hegemonia ocidental aproximou as novas potências do planeta pela necessidade de resistir às imposições do Ocidente, da sua moeda exclusiva de algum comércio internacional, e às suas imposições financeiras e morais, e é cimentado pelos anticorpos criados no passado. Países tão díspares como o Brasil, a Índia, ou a China, podem ser o esqueleto dessa nova força, mas mesmo alguns países tradicionalmente rivais e inimigos entre si, como o Paquistão e a Índia ou a Arábia Saudita e o Irão, poderão colaborar em alguns aspetos nesta nova aliança discreta e ainda silenciosa. É claro que este novo poder emergente centrado na Ásia apadrinhará os “proscritos” e sujeitos às “sanções” do Ocidente, como Cuba, a Venezuela ou o Irão, cujo principal crime tem sido não dar os seus recursos de mão-beijada às empresas dos até agora senhores do mundo.

Com este cenário montado, o Ocidente, sempre arrogante mas de vistas curtas, empurra cada vez mais a velha Rússia europeia para os braços da Ásia, promovendo a sua aliança com a China, com a Índia e com o resto do mundo já cansado dos desmandos europeus e americanos. O novo poder emergente vai assim ser reforçado em tecnologia e poder militar, porque já possui gente, história, conhecimento, economia e mercado em abundância. A orientação do caminho já se percebe, falta ainda perceber melhor a velocidade dessa caminhada.

sábado, 26 de março de 2022

Saudades da censura

Em tempos a disputa dos recursos das terras fazia-se pela conquista, expulsão dos povos derrotados, e pela tomada de posse da sua terra e dos seus bens por parte dos conquistadores. O antigo testamento, quando nos descreve a conquista da “terra prometida” pelos judeus vindos do Egito, dá-nos bons exemplos dessa situação. Os residentes eram geralmente postos em fuga ou totalmente chacinados, e os seus recursos distribuídos pelos conquistadores. Isto deve ter acontecido desde o início da humanidade (como de resto ainda acontece entre os nossos primos primatas e com outros amimais) e ter durado até ao momento em que os conquistadores deixaram de querer apenas ter a posse da terra para caçar ou cultivar. Nesse tempo conquistar um território dava direito ao uso dos seus recursos como a caça ou a agricultura, mas depois de se ser dono da terra era preciso ir caçar ou cavar a terra…

Com o passar dos séculos os grupos mais poderosos perceberam que podiam não só tirar vantagem dos territórios conquistados e seus recursos, mas também dos povos que os ocupavam, e em vez de os expulsar ou matar passaram a domina-los, obrigando-os ao pagamento dos mais diversos impostos. Foi a partir desse momento que nasceram os impérios em que a conquista se fez sobre os povos e não apenas sobre as suas terras, e em que os vencidos passaram a ser produtores de riqueza para os vencedores. Quando os romanos conquistaram a Península Ibérica não vieram cá para suar as estopinhas até à exaustão lavrando as terras ou ceifando o trigo, mas antes para cobrar impostos aos povos que cá viviam, que assim passaram a ser obrigados a produzir para assegurar a sua própria sobrevivência, mas também para permitir uma vida faustosa e confortável dos conquistadores.

Na atualidade o controlo da vontade dos povos é uma ciência subtil e altamente eficaz, que permite que os dominados nem sequer percebam que o são, julgando-se antes gente livre de escolher o seu modo de vida e o seu futuro. O domínio dos povos assenta atualmente no controlo da informação que lhes chega. Com muito conhecimento sobre a natureza humana, sobre os seus medos e anseios mais profundos, e um bom controlo dos meios de comunicação, consegue-se moldar a opinião das pessoas e manipular as suas escolhas. E isto, sempre estando as gentes convencidas que são senhoras da sua maneira de pensar, e não percebendo que lhes controlam o que veem e ouvem, e logo também o que pensam.

Não é por acaso que no mundo ocidental, a que alguns insistem em chamar de “mundo livre”, os grandes grupos económicos controlam a comunicação social. Quem controla, por exemplo, um canal de televisão, tem um poder imenso sobre a comunidade, pela escolha da programação apresentada, mas também, evidentemente, pelo domínio das redações dos noticiários televisivos. Sabemos que os filmes e demais programas estrangeiros que são exibidos numa determinada língua criam maior ligação afetiva, cultural e mesmo tendência para replicar os modelos culturais dos povos que falam essa língua e cuja vida se partilha diariamente no pequeno ecrã. Neste capítulo não necessito lembrar que entre nós a maioria esmagadora dos filmes nos chega numa única língua, e não em nenhuma das outras inúmeras línguas europeias ou do mundo… E podem crer que se faz muito e muito bom cinema e televisão por esse mundo fora.

A informação das televisões e rádios, e mesmo dos jornais, sofre também um processo de “normalização” em que tendencialmente se dá a conhecer ao público apenas uma certa visão do mundo. Começa pela preferência dadas às agências de informação ditas “de confiança” que apresentam a “sua” visão dos factos; depois vem a seleção e tratamento das notícias que são feitos sob o controlo de chefes de redação nomeados pelas administrações das empresas e, evidentemente estes não lhes querem desagradar. Por isso os próprios jornalistas estão condicionados nas apreciações que fazem sobre o mundo e, se não quiserem passar o resto da vida a fazer apontamentos sobre temas desinteressantes, devem também eles agradar à hierarquia… Portanto o jornalista deve agradar ao seu chefe de redação, que por sua vez deve agradar à administração do grupo detentor do órgão de comunicação, que por sua vez deve agradar aos responsáveis pelo poder político nacional, que por último não querem em caso algum desagradar aos “poderes superiores do mundo livre”. Neste processo de controlo da opinião pública escolhem-se também a dedo os comentadores que se pretende veiculem determinada sensibilidade e opinião… Deste modo cria-se um verdadeiro controlo da informação, feito sem necessidade de “lápis azul”. Este controlo, assente num autocontrolo dos envolvidos no processo, funciona maravilhosamente, dando-nos a ideia que recebemos uma informação imparcial e verdadeiramente livre, quando efetivamente recebemos apenas uma certa visão do mundo e dos seus factos.

Em último caso silenciam-se as vozes dissonantes vindas de dentro ou de fora do sistema, sejam os jornalistas colocados na “prateleira”, sejam os órgãos de comunicação alternativos que ousem não colaborar na difusão da “verdade oficial”. O recente bloqueio de sites russos e de muitíssimos canais “dissonantes” existentes no YouTube são um bom exemplo deste último recurso. Mas mesmo assim, por vezes o controlo do pensamento dos povos falha…

Nesse caso, quando teimosamente os povos não se entregam aos poderes instituídos, pode sempre patrocinar-se um golpe de estado feito pelos militares dos países “incumpridores”, corrompidos por dinheiro e honrarias, como aconteceu não há muito tempo no Egito e na Argélia. Se mesmo isso falhar arranja-se uma desculpa qualquer para uma invasão (mesmo que ridícula e claramente fantasiosa) como aconteceu no Iraque ou no Panamá, e coloca-se no poder alguém de confiança que não permita devaneios de verdadeira liberdade dos povos irreverentes. E em qualquer dos casos a comunicação social dos poderosos do mundo difundirá mil vezes as mentiras dos agressores até que pareçam verdades, e calará o mais possível os seus crimes.

Às vezes quase tenho saudades da censura de outros tempos, porque pelo menos sabíamos que nos estavam a mentir e isso criava homens dominados mas de pensamento livre. Hoje tenho a sensação de viver num mundo de homens que pensam ser livres, mas que na verdade têm um pensamento dominado.