quinta-feira, 20 de maio de 2021

A conservação da paisagem

Já ia acima da aldeia do Sabugueiro, com vista para norte até terras de Trás-os-Montes, quando encontrei um velho camponês à volta dos campos ainda agrícolas daquele vale das terras altas da Serra da Estrela. Cansado da caminhada sempre a subir, fiz uma breve pausa e disparei para meter conversa: “paisagem magnífica que tem daqui!…” O homem levantou os olhos para o horizonte por alguns momentos, encolheu levemente os ombros e, ainda antes que dissesse alguma palavra, percebi-lhe na complacência amigável a sua visão do mundo feita do outro lado. Depois acabou por dizer: “Acha-a bonita? Se calhar é…”

Ficou claro para mim naquele momento a dualidade do valor da paisagem, que só é verdadeiramente apreciável pelos que não a vivem no quotidiano. Para os residentes a paisagem não é algo que se aprecie ou valorize, nem mesmo que se tenha em conta como realidade autónoma. Para os que nascem e vivem numa mesma região, a paisagem “não existe”, porque aquilo que veem diariamente não tem apreciável valor estético. É simplesmente o mundo que conhecem, onde vivem a sua vida de todos os dias, com os seus trabalhos, alegrias e tristezas. Não é bonito nem feio, é apenas o espaço onde vivem. Aquilo que veem quando levantam os olhos para o horizonte não é forma, mas antes conteúdo e função. Já para os não residentes, passantes ocasionais, moradores recém-chegados ou turistas, pelo contrário, a paisagem é geralmente apenas forma, e é apreciável do ponto de vista estético segundo os padrões culturais de cada um, de cada momento, e de cada sociedade.

A paisagem é na verdade um livro aberto para quem a saiba ler. Ela conta-nos muito sobre a natureza e evolução do território, sobre o trabalho do Homem, a sua cultura e tecnologia, a distribuição da propriedade e da riqueza, a história longínqua e mais recente… está lá tudo, mas estranhamente o que se vê é simplesmente a consequência daquilo que se não vê.

A paisagem entre nós, no sul da Europa, é sempre uma obra do Homem, porque há milhares de anos que por aqui não existem paisagens naturais. Por isso a paisagem é algo necessariamente dinâmico, não só porque responde às mudanças da natureza, como principalmente porque é consequência do quotidiano das sociedades humanas e do seu modo de vida sempre em evolução. E esta questão é crucial quando se fala de paisagem e se pensa na sua gestão: a paisagem é o resultado da acumulação das atividades do homem sobre o meio natural, e evidencia mudanças permanentes resultantes da vida das gentes. Uma paisagem que não muda é fruto de uma sociedade que também não muda, o que no século XXI corresponde a uma sociedade doente ou moribunda.

Com o desenvolvimento do turismo a paisagem passou ela própria a ter um valor económico importante, como já tinham antes os bons solos, a água, os minérios ou os peixes do mar, e por isso temos que aceitar que atualmente a paisagem é também um recurso económico em si mesma. Dizer isto, que é inegavelmente verdade, implica ter que aceitar que este novo “recurso” vive na dependência da forma como usamos os outros recursos. Se as outras atividades humanas, como a agricultura, a silvicultura, a pecuária, o urbanismo, os transportes ou a indústria, introduzirem alterações no aspeto de uma região, essas modificações podem valorizar ou desvalorizar a paisagem enquanto recurso usado pelo turismo.

E aqui começa a complicar-se a situação porque se criam conflitos de interesses entre setores económicos, com as atividades ligadas ao turismo (apoiadas nos paradigmas estéticos conservadores da intelectualidade urbana que se julga progressista), a tentar que a paisagem não mude, e alguns setores económicos da comunidade local a tentar modernizar as suas atividades, o que frequentemente obriga a alterações na paisagem. Entre nós este conflito de interesses parece de conciliação impossível, e os diversos atores em cena mostram-se frequentemente irredutíveis nas suas pretensões. Estão em confronto as duas formas diferentes de olhar a paisagem: como residente ou como estrangeiro. Boa parte das discórdias e dos conflitos que existem quando se fala na gestão da paisagem resultam exatamente desta diferença de visões entre quem constrói a paisagem quando desenvolve a sua vida diária, e quem acha que se deve manter um certo modelo de paisagem por preconceitos e opções estéticas, e por interesses económicos.

Há quem não tenha compreendido que a imutabilidade da paisagem tem como consequência a imutabilidade das atividades humanas, o que é simplesmente um absurdo no momento atual da nossa história. Se, como alguns pretendem, se tentassem conservar sem mudanças as paisagens, isso significaria manter o modo de vida do passado no tempo presente, o que seria inaceitável para os residentes, que são os construtores da paisagem. O mais interessante é que qualquer tentativa de impedir as mudanças na sociedade em nome da conservação da paisagem levaria as gentes a emigrar, e esse abandono das terras conduziria inevitavelmente a uma ainda maior mudança na paisagem. De resto, o caminho de uma sociedade evoluída não pode passar por manter no passado parte da população para que alguns outros a possam exibir aos turistas e disso tirar vantagem.

Mas se a paisagem é um valor económico significativo e espelha o que de bom ou mau fazemos ao território, há sempre que a ter em conta. Por isso julgo que se forem tomadas opções que valorizem as pessoas e as suas atividades económicas, e ao mesmo tempo protejam o ambiente e a qualidade de vida de todos nós, estaremos a construir paisagens diferentes das atuais, mas atrativas para quem vem de fora, e em simultâneo uma vida com futuro para quem está cá dentro.

E isto será assim tão difícil de compreender?

Este texto foi publicado no jornal Sudoeste n.º 178

domingo, 14 de fevereiro de 2021

 Deus, a natureza, e os nossos mitos

Apesar de todos os avanços verificados na ciência no que respeita à compreensão dos sistemas naturais, ainda não nos conseguimos libertar completamente de um certo modelo nascido da ideologia “criacionista” judaico-cristã: o mundo perfeito foi obra de Deus, e conforme foi feito, assim deverá ser mantido até ao final dos tempos. Esta visão do mundo, que olha para os sistemas naturais como obras perfeitas, baseia-se numa visão estática da natureza, imaginando a existência de um estado ótimo e perfeito para cada recanto do planeta.

A mesma visão bíblica que subjaz à nossa cultura coletiva criou a artificial separação entre o ser humano e as demais espécies da “criação”. Mesmo sem que demos por isso esta visão coloca as ações humanas num patamar diferente das ações que resultam das atividades dos outros seres vivos. Daí a dualidade de critérios quando se apreciam os impactos das diferentes espécies sobre os ecossistemas. Por exemplo, quando vemos os elefantes, movidos pela fome a derrubar árvores e contribuir para a formação de uma savana mais aberta, achamos que isso é a ordem da natureza a funcionar: abrir a floresta é criar pastagens para os herbívoros, e daí comida para os predadores, etc., portanto promover a manutenção do “estado perfeito e eterno” da natureza criada por Deus. A ideologia criacionista que constitui o cenário em que se desenvolve o nosso pensamento, leva-nos a pensar que a “sábia providência” (divina ou da natureza, que nós atualmente confundimos) orienta o elefante para a perpetuação da savana “conforme ela é”, que é como quem diz, conforme nós imaginamos que seja o seu estado ótimo, perfeito, e supostamente eterno.

É escusado dizer que, se um desbaste de árvores com a mesma dimensão for feito por um criador de gado que pretende aumentar a área de pastagens para as suas vacas, isso é visto como uma perturbação intolerável que compromete o futuro do planeta. Para o bem e para o mal não conseguimos ver o ser humano apenas como uma das muitas espécies do mundo natural. O sentimento de culpa pelos muitos desmandos que temos feito ao planeta leva-nos a só ver os aspetos positivos das ações de todos os outros seres vivos, enquanto às ações dos Homem (sejam, elas quais forem) chamamos de “perturbação”, e consideramos que degradam o “equilíbrio da natureza”. É um novo mito do bom selvagem, mas agora aplicado aos seres vivos não humanos.

Da visão criacionista, que na essência nos diz que Deus fez um mundo perfeito e eterno, resulta a nossa noção de “equilíbrio” da natureza, visto sempre como a criação do tal estado “ótimo” em que supostamente a natureza atingiria o seu “clímax” de abundância e diversidade de vida. A primeira noção que é necessário desmistificar é a de “equilíbrio”, geralmente visto como um estado ideal do sistema natural de uma região, em que os fatores naturais, como geologia, solo e clima, moldam o sistema biológico até atingir o tal estado ótimo, perfeito e imutável. Na verdade, e pelo contrário, o que os sistemas naturais têm (felizmente) de mais constante e que constitui a sua melhor arma de sobrevivência e evolução, é a sua dinâmica que permite a adaptação permanente à mudança: o “desequilíbrio” é o motor da vida na terra, e é dele que resulta a evolução permanente dos seres vivos, e o aperfeiçoamento dos sistemas naturais. Se o tal “equilíbrio” alguma vez tivesse tomado conta do planeta, ainda hoje não haveria nele mais que as bactérias do início da vida na Terra.

Associada à noção edílica de “equilíbrio”, anda frequentemente a noção de “harmonia” da natureza, muito em voga, até por um certo fascínio atual por uma cultura mística orientalizante que domina parte do pensamento moderno do cidadão culto e urbano. Efetivamente, na realidade não existe na natureza qualquer tipo de “harmonia” mais ou menos divina, mas antes uma evolução que nasce de uma luta, frequentemente cruel, impiedosa e permanente entre indivíduos e espécies, no sentido da sobrevivência dos mais dominadores e o sucesso reprodutivo das suas espécies. Felizmente o mundo não anda ao sabor das ideologias humanas, mas antes pelas suas próprias leis, porque se assim não fosse nada teria evoluído até hoje.

Deste combate entre os que estão melhor e os menos bem adaptados às condições de um local em cada momento, resulta o domínio de alguns e o desaparecimento de outros, mas esse processo não conduz ao acréscimo de biodiversidade, antes pelo contrário à sua redução. Em particular, se as condições físicas do território forem as mesmas em vastas áreas, a evolução natural sem perturbações externas conduz inevitavelmente a uma monotonia paisagística e a um grande empobrecimento no que respeita à diversidade da vida e mesmo à sua abundância.

Mas o planeta vive em permanente mudança, desde logo pelas variações cósmicas que induzem alterações nos climas (mesmo as não induzidas pelas atividades humanas), pela difusão de espécies vegetais e animais (mesmo as que não são da nossa responsabilidade), pela existência de incêndios (mesmo os que não são de origem antrópica). Essas “perturbações” constantes que ocorrem no planeta (onde devemos necessariamente incluir muitas das causadas pelo Homem), se moderadas, dão até origem à multiplicação de paisagens e de espécies vivas, e necessariamente ao enriquecimento da vida na Terra.

Por muito que vos custe, esqueçam as ideias de “natureza perfeita”, “imutável”, plena de “equilíbrios” e “harmonias”, porque tudo isso não passa de imaginação moderna, que não tem qualquer correspondência com o mundo real.

Lamento se estou a destruir o vosso imaginário romântico da natureza, mas é assim ma realidade é esta.