sexta-feira, 30 de setembro de 2022

 A Nova “Nova Rússia”

A Europa está cheia de estados que incluem povos diferentes, e isso percebe-se pelas línguas que falam e pela cultura e história que possuem. A Espanha, a França, ou o Reino Unido, (que por vezes está mais desunido que unido, pelas divergências com a Irlanda do Norte e com a Escócia) têm problemas internos com povos que se sentem minoritários ou mal representados no poder. Quem aprecie a evolução das fronteiras dos estados europeus verá grandes mudanças verificadas ao longo dos séculos, com o surgimento e extinção de países e com as fronteiras em mudança constante. Não há muito tempo a antiga Jugoslávia desmembrou-se em diferentes estados após uma guerra prolongada e brutal, a antiga Checoslováquia deu origem a dois países, etc.. Portugal é claramente uma exceção nesta matéria.

Se a correspondência entre um estado e uma comunidade cultural e linguística homogénea é difícil de encontrar na Europa, ainda é mais difícil de achar em África, onde as fronteiras existentes foram quase sempre traçadas por nós, europeus, frequentemente com régua e esquadro, como quem reparte um bolo entre convivas gulosos. Quando se traçaram essas fronteiras do interior de África atribuindo a sua posse a diversos estados europeus, na maior parte dos casos nem sequer se sabia o que por lá existia, se eram territórios montanhosos, planícies, lagos ou rios… e ainda menos que povos foram repartidos pelos diferentes “senhorios europeus”, e que povos, por vezes de rivalidades ancestrais, foram incluídos na mesma colónia europeia. Muitas das guerras que existiram e existirão em África tiveram e terão ainda esta origem. É quase inevitável que assim seja, e a responsabilidade foi indiscutivelmente do colonialismo brutal que escravizou os africanos e lhes perturbou o futuro. Bem podemos tentar branquear a nossa responsabilidade neste processo, dizendo que levámos para África a “civilização” e o “desenvolvimento”, tal como antes dizíamos ter levado a “salvação das almas” àqueles que escravizávamos e vendemos como gado, mas o papel da Europa Ocidental no mundo nos últimos séculos tem sido efetivamente vergonhoso.

 A Ucrânia, tão falada ultimamente, é também ela, um exemplo da situação de fronteiras voláteis impostas por poderes estrangeiros, e de uma integração forçada daquelas terras e gentes em diversas potências da região. A sua situação de “fronteira” entre vizinhos poderosos não só determinou a sua inclusão em diferentes reinos, impérios ou senhorios ao longo dos séculos, como influenciou mesmo o nome dado àquele território: “Ucrânia”, em russo “Ukraina” e em polaco antigo “Ukrainian”, significa precisamente “fronteira”.

Ao contrário de Portugal, que no século XIII tinha as suas fronteiras definidas no essencial, o território a que hoje chamamos “Ucrânia” andou de “mão em mão”. Depois de ser dominada pelos mongóis, foi posse dos senhores da Polónia, da Lituânia, da Áustria-Hungria, do Império Otomano, e dos Czares da Rússia. Nos séculos XVII e XVIII teve um breve período de domínio dos cossacos (eles próprios homens livres de origem russa ou ucraniana) e por fim o território e as suas gentes foram integrados no Império Russo até à sua queda. Pouco tempo depois foi criada a Republica Socialista Soviética da Ucrânia, e nela foram incluídos territórios com populações de origem russa e outros com gentes mais do oeste, a que hoje chamamos ucraniana. Não havia problema, porque ao tempo se pensava que a URSS iria durar para sempre, e por isso, mesmo territórios que tinham sido russos nos últimos séculos e eram ocupados por populações russófonas, poderiam se incluídos naquela unidade administrativa. Assim, quase toda a região que já no tempo dos Czares se chamava de “Nova Rússia” ficou sob administração da República Socialista Soviética da Ucrânia. A situação da Crimeia é um tanto diferente, porque nunca pertenceu à Ucrânia e só em 1954 foi integrada na República Socialista Soviética da Ucrânia por decisão de  Khrushchov, ele próprio ucraniano, para facilitar a administração do território. Mas inesperadamente o mundo mudou, e quando em 1992 a URSS se fragmentou e a Ucrânia se tornou independente, os russos nela existentes passaram a comunidade minoritária dentro do novo estado.

A relação entre russos e ucranianos era geralmente tranquila, e ainda mais fraterna era a relação entre os russos que ficaram integrados na Ucrânia e os outros ucranianos falantes de ucraniano, tanto mais que são línguas bastante próximas. E foi assim até que poderes externos vieram criar a intriga e estimular o ódio… Hoje tentamos fazer esquecer que foram os ocidentais a promover o golpe de estado que afastou o presidente eleito democraticamente na Ucrânia (Viktor Ianukóvytch), o que veio criar a guerra civil que durou oito anos, com milhares de mortos e deslocados a que a comunicação social do Ocidente não deu importância. Na verdade o novo poder pró-ocidental da Ucrânia nasceu de um golpe de estado contra um poder democraticamente eleito, mas no ocidente fez-se vista grossa ao atropelo à legalidade e à democracia. Em boa verdade a democracia só é importante se nos der jeito…

A “Nova Rússia” é um nome histórico usado na época do Império Russo para a região ao norte do Mar Negro que é hoje na sua maioria a parte sul e leste da Ucrânia. Foi formada como uma província imperial da Rússia em 1764 e por diversas vezes incluiu também a região moldava da Bessarábia (grande parte corresponde à Transnístria moldava atual), o litoral norte do Mar Negro (as atuais províncias ucranianas de ZaporizhiaKherson), o litoral do Mar de Azov, a região tártara da Crimeia, as estepes Terek–Kuma ao longo do rio Kuban e a região circassiana.

Agora, tudo leva a crer que a Rússia quer reabilitar esta unidade cultural e linguística de maioria russa pela conquista de parte da Ucrânia e, eventualmente pela integração da Transnístria, que já é na prática autónoma da Moldávia.

O que parece certo é que se a Ucrânia não tivesse tido o golpe de estado a favor do Ocidente, e se em consequência não tivesse mostrado vontade de entrar na OTAN, se tivesse cumprido os acordos de Minsk, se tivesse respeitado as populações do Donbass, esta guerra, que é evidentemente algo de horrível e condenável como todas as outras guerras que existem no mundo, nunca teria existido. E com paz e cooperação as populações de toda a região viveriam melhor e poderiam ter um futuro mais sorridente. Também esta é mais uma guerra criada por interesses estranhos às pessoas que, quer falem russo ou falem ucraniano, todos os dias se levantam para trabalhar e que querem criar os filhos em paz e sossego.

Mas os senhores do mundo, que já têm para si riquezas incontáveis, querem sempre mais, e não se importam com o sofrimento dos povos. É quase sempre assim.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

 Operação Angola

Que fique claro: não sou angolano, nunca fui a Angola, não tenho nenhum interesse económico (ou outro qualquer que seja) relacionado com Angola. Mas já sou velho bastante para ter visto muitas vezes coisa semelhante ao que vi agora quando das eleições angolanas de agosto último. Sei, ou julgo que sei, que infelizmente tem havido muita corrupção em Angola, como de resto em outros países africanos e mesmo europeus (nós nesse aspeto não podemos atirar pedradas…), o que à partida me leva a duvidar da isenção e transparência da vida política nesses países. No entanto…

Assim que vi os jornalistas portugueses, ainda durante a campanha eleitoral angolana a dizer repetidamente que havia nos cadernos eleitorais de Angola muitos nomes de pessoas já falecidas, percebi logo que iam preparar marosca. Quem tenha experiência de olhar com atenção as voltas do mundo, via de imediato que a referência à existência de nomes de falecidos em cadernos eleitorais visava criar a desconfiança sobre a isenção das eleições angolanas. E é claro que aquilo, dito com o ar de quem está a denunciar uma irregularidade grave, deixa, mesmo as pessoas de boa-fé, a pensar que as eleições possivelmente vão ter “tramoia”.

Como todos saberão, também entre nós e um tanto em todo o mundo, os cadernos eleitorais não são atualizados com muita frequência e por isso, sempre que morre alguém, o nome dessa pessoa falecida continua a constar dos cadernos eleitorais. No entanto, como se sabe, isso não constitui problema algum. Em Portugal por volta dos anos noventa, havia quase 20% de nomes a mais nos cadernos eleitorais, que eleitores em idade de votar. Como também se sabe o sistema não permite que alguém vote pelos falecidos, logo isso apenas afeta o valor da abstenção que fica a parecer maior que na realidade é. Portanto, ao contrário daquilo que era sugerido por alguns jornalistas portugueses, o facto de haver nomes de falecidos nos cadernos eleitorais não configurava nenhum motivo de preocupação ou suspeita sobre a qualidade do futuro ato eleitoral.

Eu já vi isto muitas vezes. É a primeira fase de uma operação preparada criteriosamente para interferir nos destinos de um outro país.

Passada esta primeira fase da “operação” veio, como eu imaginava, a fase em que o líder da oposição levanta dúvidas sobre o processo eleitoral afirmando que tem elementos (que acabará por nunca exibir) que o levam a acreditar que houve fraude eleitoral. Como sabemos, mesmo a maior mentira, se dita com convicção e com ar sério, passa por ser verdade, ou pelo menos cria a dúvida. Pede a recontagem dos votos, pede a análise das atas das assembleias eleitorais, etc., etc., mas nunca exibe provas de algo que pudesse alterar significativamente o resultado das eleições. Esta é a segunda fase da operação.

No caso de Angola não interessava criar violência nas ruas, porque importava dar credibilidade à oposição (depois de uma longa guerra civil, era importante mostrar que a oposição é séria e confiável, e pode ser governo), e por isso não se atiçou a população com agitadores pagos ou engajados para o efeito. Noutros casos essa é a terceira fase da operação: agitação nas ruas, tumultos e, se necessário for, feridos e mortos. Mas neste caso jogava-se numa estratégia de médio prazo, ou seja, é um “trabalho” para dar frutos em eleições que se seguem e não imediatamente, e também por isso não se instigou a desordem e a violência.

A fase seguinte da operação é ainda, e mais uma vez, da responsabilidade da comunicação social, mas agora centrada no apoio de “comentadores” aparentemente “sábios e sensatos”, residentes habituais nos canais do sistema ou convidados especialmente para o efeito. Estes começam a afirmar, embora sem qualquer tipo de prova, que sabem de fonte segura que a oposição ganhou as eleições, e logicamente que houve fraude eleitoral, e aos poucos serão os próprios jornalistas a afirmar ou sugerir a fraude e a desacreditar os resultados das eleições. Fica a suspeita, que para alguns se transforma em certeza absoluta, que não há legitimidade no poder eleito, o que o fragiliza internamente face à população eleitora, e externamente face à opinião pública internacional.

Mais tarde grande parte da opinião pública ficará convencida que o poder em Angola não é legítimo e ficará capaz de aceitar um eventual golpe de estado que deponha o governo em exercício, ou a aplicação de sanções que algum governo estrangeiro lhe queira impor. A desconfiança criada face ao processo eleitoral e ao partido vencedor, ajuda mesmo a denegrir a imagem dos governos ou personalidades que apoiem esse governo. Esta é a quarta fase da operação: conseguir convencer a comunidade que o poder estabelecido é desonesto e fraudulento, e quem o apoiar não é boa gente. Neste ponto do processo já se ultrapassa qualquer tipo de racionalidade, e apela-se à emoção (como a clubística, gosta-se ou não se gosta, e pronto).

Segue-se a tarefa que consiste em repetir mil vezes, ao longo dos anos, aquilo que é, pelo menos no essencial, mentira, para que essa mentira se consolide na opinião pública como se fosse verdade. É a sexta fase da operação: consolidar a mentira como se fosse verdade. A partir dessa fase quem contrariar a “nova verdade” é suspeito de ser pouco inteligente ou estar conluiado com os “governantes ilegítimos”. A autocensura entra em ação, porque todos nós queremos estar de bem com a comunidade, e mesmo quem tenha inicialmente dúvidas, acaba por se alinhar com a maioria e ajudar a propagar a “nova verdade” que é efetivamente uma mentira consolidada.

A última fase do processo consiste no assalto ao poder, preferencialmente por via eleitoral, contando mais uma vez com o apoio imprescindível da comunicação social, e com a participação de técnicos (especializados em psicologia coletiva e manipulação de massas). Se a comunidade insistir em dar a vitória eleitoral a quem não nos interessa, então poderá ser de forma violenta através de um golpe de estado ou, em último caso, através de uma invasão com base em qualquer pretexto que na altura se invente. Este processo tem acontecido em inúmeros casos, e é sobretudo aplicado em países que têm recursos naturais ou posição estratégica invejável. Parece ser também o que está em preparação para Angola. Angola, se calhar para infelicidade dos angolanos, é uma terra rica de recursos, e esses recursos são alvo de cobiça de grandes potências.

No entanto…

Eu, evidentemente, não estive lá para ver, mas esteve lá uma missão da CPLP, além de muitas centenas de observadores de organizações internacionais, como representantes da União Africanada Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), e do Centro Carter dos Estados Unidos, e não vi ninguém a afirmar que tivesse havido fraude eleitoral.

Houve também observadores independentes angolanos que não detetaram qualquer irregularidade significativa, e isto, além do órgão próprio do estado angolano (a Comissão Nacional Eleitoral), que também não encontrou nada que leve a duvidar que as eleições foram livres e justas. Além de tudo isso, Angola tem tribunais e, se existirem provas de irregularidades irão apreciá-las e decidir em conformidade.

A última fase da operação, no caso de Angola

Daqui a uns anos já quase ninguém se vai lembrar exatamente do que aconteceu, mas a ideia que vai prevalecer na sociedade angolana e internacional é que o poder em Angola não é legítimo e certamente manipula os resultados eleitorais. Se houver novas eleições, e de novo se montar uma campanha deste tipo (o que garantidamente vai acontecer), já a opinião pública angolana e internacional estarão disponíveis para desconsiderar o governo, o partido que o apoia, e os seus aliados, e aceitar uma mudança qualquer de poder, mesmo que surja de forma ilegítima.

É assim que trabalha o ocidente. Por isso muitos povos do mundo acham que nós, os ocidentais, não somos de confiança. Por isso muitos povos do mundo recusam o sistema eleitoral a que chamamos “democracia”: sabem que ela pode ser subvertida por técnicas de controlo da informação e manipulação da opinião pública. E colocar os cidadãos a votar mesmo em quem os vai roubar e trair.  

A democracia é efetivamente, ainda que com os seus defeitos, o melhor sistema político que conheço, mas para que seja efetiva é necessário que haja honestidade e verdade nos agentes que nela interferem e que não haja controlo da informação e manipulação das pessoas de forma ilegítima. Quando assim não é, a democracia é apenas uma forma de controlo dos países como outra qualquer.