Pensamento aprisionado
Tic-tic, tic-tic, tic-tic, lá
vinha a velha professora de História, que para nós, miúdos ainda mal
adolescentes, de velha que era quase se confundia com a própria História. O
tic-tic era dos saltos altos, finos como agulhas espetadas nos sapatos
vermelhos que condiziam com os lábios berrantes e desenhados sobre camadas de
creme espalhadas nas faces.
Os meninos esperavam-na
encostados à parede, em fila de dois, por ordem numérica. Entravam na sala em
silêncio, e permaneciam de pé junto à carteira até que, sobre o estrado, do
alto dos seus saltos altos, viesse a severa e altiva ordem para sentar. Depois,
sempre sem mais ruído que o de virar as folhas do caderno, escreviam no topo de
uma página em branco a sequência sagrada e imutável do início da aula: primeiro,
do lado esquerdo, o número da lição; na linha abaixo, à direita, vinha a data;
descendo mais uma linha, bem ao centro, escrevia-se “sumário”. Tudo escrito a
verde e sublinhado com traço duplo a vermelho. Quanto ao sumário em si mesmo,
era ele também guardado num retângulo da mesma cor vermelha do batom e dos
sapatos da professora. Tudo feito a régua e esquadro, com método e sisudez. Era
o início de um ritual que já nesse tempo eu achava arcaico. Mas este era apenas
o início…
De costas para o quadro escrevia,
escrevia, escrevia… e os meninos copiavam, copiavam, copiavam… Depois de tudo
copiado, de régua e caneta vermelha em punho, cercavam todas aquelas frases
transcritas do quadro para o caderninho com traços duplos e igualmente
vermelhos. Fazia-se assim desse texto o saber. E o saber ficava trancado numa
caixa pelos riscos vermelhos como barras de ferro de uma prisão solitária: de
lá nada saía; lá nada podia entrar.
Um dia qualquer vinha um teste, e
os meninos repetiam o que professora tinha escrito no quadro, e que eles tinham
copiado para o seu caderninho diário. E quem sabe, alguns daqueles meninos
seriam mais tarde professores. E então escreveriam no quadro os mesmos textos
que os meninos desse novo tempo haveriam de copiar para os seus caderninhos
diários.
Alguns desses meninos ficaram com
a alma para sempre aprisionada dentro daquelas caixas trancados pelas barras
paralelas e vermelhas, feitas com precisão e método, como prisão para prender o
pensamento. Muitos ainda hoje, já velhos, continuam sem conseguir atravessar as
paredes gradeadas das caixas do pensamento. E não o conseguem já, tanto por não
querer como por não poder. São gente de alma escrava e com medo de ser livre,
que as barras vermelhas da escola tolheram para sempre.
Ela chamava-se Arlete. Era a
professora, e também ela era escrava, escravizada em menina por umas quaisquer
barras que lhe amarraram as asas e lhe proibiram o pensamento de voar alto e
ver de mais longe. Ficou assim, incapaz da dúvida, incapaz da pesquisa para
além do que conhecido e consagrado, incapaz da confrontação de ideias, como se
o pensamento para sempre ficasse menino, e que para sossego do espírito
necessitasse em absoluto de verdades sagradas e imutáveis. E era assim que ela
queria o mundo, parado no pasmo das verdades inquestionáveis, como em adoração permanente
e tranquila ao conhecimento miles de vezes repetido. Pobre Arlete, arrogante
face aos meninos indefesos, mas de espírito confrangedoramente pobre, como
quase sempre acontece com os arrogantes.
"sem conseguir atravessar as paredes gradeadas das caixas do pensamento"...
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