A Nova “Nova Rússia”
A Europa está cheia de estados que
incluem povos diferentes, e isso percebe-se pelas línguas que falam e pela
cultura e história que possuem. A Espanha, a França, ou o Reino Unido, (que por
vezes está mais desunido que unido, pelas divergências com a Irlanda do Norte e
com a Escócia) têm problemas internos com povos que se sentem minoritários ou
mal representados no poder. Quem aprecie a evolução das fronteiras dos estados
europeus verá grandes mudanças verificadas ao longo dos séculos, com o
surgimento e extinção de países e com as fronteiras em mudança constante. Não
há muito tempo a antiga Jugoslávia desmembrou-se em diferentes estados após uma
guerra prolongada e brutal, a antiga Checoslováquia deu origem a dois países,
etc.. Portugal é claramente uma exceção nesta matéria.
Se a correspondência entre um
estado e uma comunidade cultural e linguística homogénea é difícil de encontrar
na Europa, ainda é mais difícil de achar em África, onde as fronteiras
existentes foram quase sempre traçadas por nós, europeus, frequentemente com
régua e esquadro, como quem reparte um bolo entre convivas gulosos. Quando se
traçaram essas fronteiras do interior de África atribuindo a sua posse a
diversos estados europeus, na maior parte dos casos nem sequer se sabia o que
por lá existia, se eram territórios montanhosos, planícies, lagos ou rios… e
ainda menos que povos foram repartidos pelos diferentes “senhorios europeus”, e
que povos, por vezes de rivalidades ancestrais, foram incluídos na mesma
colónia europeia. Muitas das guerras que existiram e existirão em África
tiveram e terão ainda esta origem. É quase inevitável que assim seja, e a
responsabilidade foi indiscutivelmente do colonialismo brutal que escravizou os
africanos e lhes perturbou o futuro. Bem podemos tentar branquear a nossa
responsabilidade neste processo, dizendo que levámos para África a “civilização”
e o “desenvolvimento”, tal como antes dizíamos ter levado a “salvação das
almas” àqueles que escravizávamos e vendemos como gado, mas o papel da Europa
Ocidental no mundo nos últimos séculos tem sido efetivamente vergonhoso.
A Ucrânia, tão falada ultimamente, é também
ela, um exemplo da situação de fronteiras voláteis impostas por poderes
estrangeiros, e de uma integração forçada daquelas terras e gentes em diversas
potências da região. A sua situação de “fronteira” entre vizinhos poderosos não
só determinou a sua inclusão em diferentes reinos, impérios ou senhorios ao
longo dos séculos, como influenciou mesmo o nome dado àquele território: “Ucrânia”,
em russo “Ukraina” e em polaco antigo “Ukrainian”, significa precisamente “fronteira”.
Ao contrário de Portugal, que no século XIII
tinha as suas fronteiras definidas no essencial, o território a que hoje
chamamos “Ucrânia” andou de “mão em mão”. Depois de ser dominada pelos mongóis,
foi posse dos senhores da Polónia, da Lituânia, da Áustria-Hungria, do Império
Otomano, e dos Czares da Rússia. Nos séculos XVII e XVIII teve um breve período
de domínio dos cossacos (eles próprios homens livres de origem russa ou
ucraniana) e por fim o território e as suas gentes foram integrados no Império
Russo até à sua queda. Pouco tempo depois foi criada a Republica Socialista
Soviética da Ucrânia, e nela foram incluídos territórios com populações de
origem russa e outros com gentes mais do oeste, a que hoje chamamos ucraniana.
Não havia problema, porque ao tempo se pensava que a URSS iria durar para sempre,
e por isso, mesmo territórios que tinham sido russos nos últimos séculos e eram
ocupados por populações russófonas, poderiam se incluídos naquela unidade
administrativa. Assim, quase toda a região que já no tempo dos Czares se
chamava de “Nova Rússia” ficou sob administração da República Socialista Soviética
da Ucrânia. A situação da Crimeia é um tanto diferente, porque nunca pertenceu
à Ucrânia e só em 1954 foi integrada na República Socialista Soviética da
Ucrânia por decisão de Khrushchov, ele
próprio ucraniano, para facilitar a administração
do território. Mas inesperadamente o mundo mudou, e quando em 1992 a URSS se
fragmentou e a Ucrânia se tornou independente, os russos nela existentes
passaram a comunidade minoritária dentro do novo estado.
A relação entre russos e ucranianos era geralmente
tranquila, e ainda mais fraterna era a relação entre os russos que ficaram
integrados na Ucrânia e os outros ucranianos falantes de ucraniano, tanto mais
que são línguas bastante próximas. E foi assim até que poderes externos vieram
criar a intriga e estimular o ódio… Hoje tentamos fazer esquecer que foram os
ocidentais a promover o golpe de estado que afastou o presidente eleito
democraticamente na Ucrânia (Viktor Ianukóvytch), o que veio criar a guerra
civil que durou oito anos, com milhares de mortos e deslocados a que a
comunicação social do Ocidente não deu importância. Na verdade o novo poder
pró-ocidental da Ucrânia nasceu de um golpe de estado contra um poder
democraticamente eleito, mas no ocidente fez-se vista grossa ao atropelo à
legalidade e à democracia. Em boa verdade a democracia só é importante se nos
der jeito…
A “Nova Rússia” é um nome histórico
usado na época do Império Russo para a região
ao norte do Mar Negro que é hoje na sua
maioria a parte sul e leste da Ucrânia. Foi formada como
uma província imperial da Rússia em 1764 e por diversas vezes incluiu também a
região moldava da Bessarábia (grande parte corresponde à
Transnístria moldava atual), o litoral norte do
Mar Negro (as atuais províncias ucranianas de Zaporizhia, Kherson), o litoral do Mar de Azov, a região tártara da Crimeia, as estepes
Terek–Kuma ao longo do rio Kuban e a
região circassiana.
Agora,
tudo leva a crer que a Rússia quer reabilitar esta unidade cultural e
linguística de maioria russa pela conquista de parte da Ucrânia e,
eventualmente pela integração da Transnístria, que já é na prática autónoma da
Moldávia.
O
que parece certo é que se a Ucrânia não tivesse tido o golpe de estado a favor
do Ocidente, e se em consequência não tivesse mostrado vontade de entrar na OTAN,
se tivesse cumprido os acordos de Minsk, se tivesse respeitado as populações do
Donbass, esta guerra, que é evidentemente algo de horrível e condenável como
todas as outras guerras que existem no mundo, nunca teria existido. E com paz e
cooperação as populações de toda a região viveriam melhor e poderiam ter um
futuro mais sorridente. Também esta é mais uma guerra criada por interesses
estranhos às pessoas que, quer falem russo ou falem ucraniano, todos os dias se
levantam para trabalhar e que querem criar os filhos em paz e sossego.
Mas
os senhores do mundo, que já têm para si riquezas incontáveis, querem sempre
mais, e não se importam com o sofrimento dos povos. É quase sempre assim.