As guerras da minha infância
Quando eu era miúdo já havia aquilo que hoje chamamos “bullying”, só que nesse tempo não se chamava assim, nem se ligava muito. Na minha escola havia uma mão cheia de repetentes matulões que mandavam e desmandavam nos mais pequenos.
Entre esses matulões mais fortes e mais velhos destacava-se o “América”, que andava sempre de chapéu à “cowboy” e tinha a mania que podia fazer tudo o que lhe passasse pela cabeça. Se lhe apetecesse aumentar a sacalhada de berlindes e abafadores roubados aos pequenos bastava dizer: “ó puto, passa para cá esse ‘guelas’ de vidro”, e o miúdo pequeno logo lhe estendia a mão trémula com o berlinde pretendido.
Havia um outro a que chamavam “Russo”, talvez por ser de tez clara. Esse impunha-se também aos mais pequenos e, sempre que possível, e aproveitava-se deles para seu próprio bem. Se pedisse a um dos pequenotes uma peça de fruta ganhava-a de certeza, a menos que o alvo em questão fosse um dos protegidos do “América”, porque nesse caso logo o chamava como protetor. De resto era assim no geral: cada matulão tinha a sua corte de putos fracotes que o bajulavam para receber a proteção do respetivo calmeirão.
Havia outros miúdos encorpados mas que davam menos nas vistas. O “China” era forte, mas geralmente não se metia com ninguém. Em vez de roubar aos outros as caricas, era ele mesmo que as fabricava com as cápsulas das garrafas de cerveja cheias de chumbo fundido, o que lhes dava um peso extra único. Nas corridas de caricas as dele nunca eram deitadas para fora da pista pelas dos outros e, bem pelo contrário, as que chocassem com as dele é que saíam borda fora e tinham que recomeçar do início. O “China” trocava as suas preciosas caricas e outras coisas que fabricava por berlindes e peças de fruta, e tinha assim sempre tudo o que queria.
Nessa escola passavam despercebidos outros grandalhões, como o “Índio”, morenão com quem ninguém se queria meter, mas que tinha problemas suficientes na sua vida para que também não se fosse meter com os outros. Como o “Índio”, havia outros rapazolas mais fortes com os quais mesmo os grandalhões mais temidos não queriam problemas, e que assim iam passando quase despercebidos.
Houve muitos episódios que me vêm à memória com estes personagens e, evidentemente com muitos outros, porque aquela escola tinha quase duas centenas de alunos. Num inverno, por exemplo, o “Russo” andou doente. Andava tão definhado, magro e pálido que até metia dó. Ora, está-se mesmo a ver que o “América” se aproveitou da fraqueza do adversário de sempre para o amesquinhar o mais que pode. Os protegidos do “Russo” abandonaram-no e juraram fidelidade ao “América”. Por esse tempo quem não fosse fiel ao todo poderoso da escola tinha que sofrer as represálias desse grandão que agora mandava sozinho. Claro está que os outros calmeirões, como o “China” e o “Índio” não fizeram muitas ondas, tentaram que ninguém se metesse com eles, e deixaram o tempo correr. Eles sentiam que estavam a crescer depressa e que estavam cada vez mais fortes, e por isso o tempo era seguramente seu aliado.
Mas a doença do “Russo” passou, ele ganhou de novo cores e músculo, e reforçou a sua vontade de não andar às ordens de ninguém. Para se tornar mais respeitável especializou-se na pedrada. Era certeiro com o monte de calhaus redondos que trazia sempre na sacola, e arremessava-os sem falhar a uma distância enorme. Por isso era temido entre todos os miúdos da escola. Mas o “América”, muito embora tivesse medo de se meter com o “Russo” por causa das suas pedradas mortíferas, foi arranjando sempre formas de o irritar e prejudicar. Apanhou a jeito um antigo amigo do “Russo”, o “Tótó”, que era um daqueles putos que tinha sido em tempos como um irmão para o “Russo”, mas que se deixava influenciar com facilidade, e incitou-o contra ele. Deu-lhe paus e pedras e até uma navalhinha de ponta aguçada, e foi-lhe dizendo: “não tenhas medo dele, que eu estou aqui e vou-te dando as armas para te safares…” Mas o “Russo” deu pela marosca e quando viu o “Tótó” a preparar-se para o atacar pelas costas, foi-se a ele. Claro que ficaram os dois cheios de negras, muito mais o “Tótó” que não tinha a força de calmeirão do “Russo” nem disparava as suas pedradas certeiras.
Ao ver a bulha, o “América”, ao longe, ia rindo discretamente daquilo que tinha feito ao “Tótó” e ao “Russo”, enquanto os pequenos seguidores, que queriam continuar nas boas graças do “América”, gritavam histericamente impropérios contra o “Russo” numa roda quase perfeita em torno da briga. A todos o “América” ia vendendo paus e pedras, e até navalhinhas de ponta aguçada. De longe o “China” e o “Índio” e alguns outros piscavam o olho ao “Russo”. Estavam certamente a tramar alguma contra o “América” e seus pequenos acólitos, para que deixassem de vez de mandar sozinhos…
Acabei por sair da escola e nunca cheguei a saber como acabou o conflito.