O novo mundo que aí vem
Há anos que se percebe que o Ocidente vai perdendo progressiva e discretamente a sua hegemonia esmagadora no mundo, mas os contornos, a orientação e a velocidade da mudança que se vem anunciando têm sido muitíssimo vagos e de rumo difícil de determinar. Agora, com a guerra na Ucrânia tudo se acelera, e aos poucos uma nova paisagem começa a surgir como se estivesse encoberta por nevoeiro que se dissipa. Era bom de ver que o domínio da Europa Ocidental primeiro, e do “Mundo Ocidental” mais tarde, sobre todos os povos da humanidade, não poderia eternizar-se, e apesar do ainda colossal poderio económico, tecnológico e militar deste grupo de países, novos poderes e alianças se levantam no horizonte. É bom lembrar o passado para compreender o presente e olhar mais lucidamente o futuro, por isso…
Nos últimos quinhentos anos a África foi quase totalmente conquistada, as suas gentes, que passaram a escravos ou servos, foram tratadas como sub-humanas; alguns dos povos das Américas foram completamente extintos, enquanto outros foram reduzidos à servidão, com as suas terras apropriadas por estrangeiros aos quais tiveram que passar a pagar tributo e vassalagem; a Ásia viu civilizações multimilenares esmagadas pelo colonialismo ou dominadas por “protecionismos” aceites à força da ameaça das armas; os povos da Oceania, mortos uns, dominados outros… A todos impusemos a nossa religião, o nosso modo de viver e de pensar, a nossa forma de exercer o poder, mas cinicamente fomos dizendo de nós para nós mesmos e para quem nos quisesse ouvir, que era pelo seu bem, pela salvação das suas almas, pelo seu desenvolvimento, pela sua liberdade... E os que não se queriam converter ao que nós decidimos que era “o seu bem”, então foram convertidos à força sob pena de destruição e de morte. E espalhamos como bênção ou praga pelo mundo o nosso Deus, o nosso modo de possuir os bens e a terra, de mandar nas pessoas, a nossa necessidade de consumir, a nossa forma de governar. Onde o Ocidente chegou, chegou também a ruína, a escravidão, a morte, a guerra, a humilhação e a miséria, e nada deu de bom aos povos do mundo sem que fosse por interesse ou vantagem para si mesmo. Nós tentamos esquecer e fazer esquecer o passado, mas os povos dominados do mundo não esquecem.
Via-se bem que povos de reinos e impérios seculares ou milenares, muitos dos quais durante todo esse tempo sempre caminharam à frente do Ocidente na tecnologia, na economia, na organização social e estatal, nas artes, no conhecimento, não iriam permitir por muito mais tempo este vexame da dominação. Evidentemente esta relação teria que mudar.
O esmagamento cultural das nações pelo Ocidente foi especialmente desrespeitador, alterando as leis locais, censurando as práticas ancestrais, proibindo as religiões tradicionais, e impondo, sempre impondo, os seus valores, a sua forma de ver o mundo, a sua moral. Esmagou os diferentes povos estrangeiros que encontrou no mundo, mas esmagou igualmente as diferentes culturas das diversas regiões dos seus próprios países. Foi mais que a imposição do padrão da civilização ocidental ao mundo, foi a imposição do padrão de certas elites ocidentais a todos, incluindo às regiões e comunidades minoritárias dos seus próprios países. Mas um tanto por todo o lado, dentro e fora da Europa e do Mundo Ocidental, se começou a notar a retoma das línguas regionais antes proscritas e em decadência, dos valores culturais das gentes, e ressurgiram os perigos dos nacionalismos, motivados em parte pela afronta do esmagamento das tradições ancestrais. E agora por todo o mundo aumenta esse gosto pela tradição, pelo folclore, pelas especialidades locais, pelo ancestral. Claro que a riquíssima multiplicidade cultural da humanidade não iria permitir o esmagamento definitivo das culturas e tradições dos seus povos. Percebia-se que algo teria que mudar…
A globalização económica do mundo, com vantagens reais em alguns aspetos, atingiu o absurdo e a irracionalidade ambiental, guiada exclusivamente pela procura do lucro, mas com desprezo total pelas pessoas, pelo seu bem-estar, pelo seu modo de vida, pelo ambiente da Terra e pelo futuro. E vê-se agora que ela, a globalização, contrariamente ao que se disse, nunca foi pensada nem nunca serviu para irmanar e desenvolver os povos, mas antes para dar vantagem a alguns grupos sobre todos os demais. Também se percebe que nesta matéria as mudanças serão inevitáveis…
O mundo unipolar dominado pelo Ocidente parece ser cada vez mais questionado e estar a entrar em acelerada erosão, e pode dar lugar a um outro mundo, talvez de novo bipolar ou mesmo multipolar. Essa exagerada hegemonia ocidental aproximou as novas potências do planeta pela necessidade de resistir às imposições do Ocidente, da sua moeda exclusiva de algum comércio internacional, e às suas imposições financeiras e morais, e é cimentado pelos anticorpos criados no passado. Países tão díspares como o Brasil, a Índia, ou a China, podem ser o esqueleto dessa nova força, mas mesmo alguns países tradicionalmente rivais e inimigos entre si, como o Paquistão e a Índia ou a Arábia Saudita e o Irão, poderão colaborar em alguns aspetos nesta nova aliança discreta e ainda silenciosa. É claro que este novo poder emergente centrado na Ásia apadrinhará os “proscritos” e sujeitos às “sanções” do Ocidente, como Cuba, a Venezuela ou o Irão, cujo principal crime tem sido não dar os seus recursos de mão-beijada às empresas dos até agora senhores do mundo.
Com este cenário montado, o Ocidente, sempre arrogante mas de vistas curtas, empurra cada vez mais a velha Rússia europeia para os braços da Ásia, promovendo a sua aliança com a China, com a Índia e com o resto do mundo já cansado dos desmandos europeus e americanos. O novo poder emergente vai assim ser reforçado em tecnologia e poder militar, porque já possui gente, história, conhecimento, economia e mercado em abundância. A orientação do caminho já se percebe, falta ainda perceber melhor a velocidade dessa caminhada.