Saudades da censura
Em tempos a disputa dos recursos das terras fazia-se pela conquista, expulsão dos povos derrotados, e pela tomada de posse da sua terra e dos seus bens por parte dos conquistadores. O antigo testamento, quando nos descreve a conquista da “terra prometida” pelos judeus vindos do Egito, dá-nos bons exemplos dessa situação. Os residentes eram geralmente postos em fuga ou totalmente chacinados, e os seus recursos distribuídos pelos conquistadores. Isto deve ter acontecido desde o início da humanidade (como de resto ainda acontece entre os nossos primos primatas e com outros amimais) e ter durado até ao momento em que os conquistadores deixaram de querer apenas ter a posse da terra para caçar ou cultivar. Nesse tempo conquistar um território dava direito ao uso dos seus recursos como a caça ou a agricultura, mas depois de se ser dono da terra era preciso ir caçar ou cavar a terra…
Com o passar dos séculos os grupos mais poderosos perceberam que podiam não só tirar vantagem dos territórios conquistados e seus recursos, mas também dos povos que os ocupavam, e em vez de os expulsar ou matar passaram a domina-los, obrigando-os ao pagamento dos mais diversos impostos. Foi a partir desse momento que nasceram os impérios em que a conquista se fez sobre os povos e não apenas sobre as suas terras, e em que os vencidos passaram a ser produtores de riqueza para os vencedores. Quando os romanos conquistaram a Península Ibérica não vieram cá para suar as estopinhas até à exaustão lavrando as terras ou ceifando o trigo, mas antes para cobrar impostos aos povos que cá viviam, que assim passaram a ser obrigados a produzir para assegurar a sua própria sobrevivência, mas também para permitir uma vida faustosa e confortável dos conquistadores.
Na atualidade o controlo da vontade dos povos é uma ciência subtil e altamente eficaz, que permite que os dominados nem sequer percebam que o são, julgando-se antes gente livre de escolher o seu modo de vida e o seu futuro. O domínio dos povos assenta atualmente no controlo da informação que lhes chega. Com muito conhecimento sobre a natureza humana, sobre os seus medos e anseios mais profundos, e um bom controlo dos meios de comunicação, consegue-se moldar a opinião das pessoas e manipular as suas escolhas. E isto, sempre estando as gentes convencidas que são senhoras da sua maneira de pensar, e não percebendo que lhes controlam o que veem e ouvem, e logo também o que pensam.
Não é por acaso que no mundo ocidental, a que alguns insistem em chamar de “mundo livre”, os grandes grupos económicos controlam a comunicação social. Quem controla, por exemplo, um canal de televisão, tem um poder imenso sobre a comunidade, pela escolha da programação apresentada, mas também, evidentemente, pelo domínio das redações dos noticiários televisivos. Sabemos que os filmes e demais programas estrangeiros que são exibidos numa determinada língua criam maior ligação afetiva, cultural e mesmo tendência para replicar os modelos culturais dos povos que falam essa língua e cuja vida se partilha diariamente no pequeno ecrã. Neste capítulo não necessito lembrar que entre nós a maioria esmagadora dos filmes nos chega numa única língua, e não em nenhuma das outras inúmeras línguas europeias ou do mundo… E podem crer que se faz muito e muito bom cinema e televisão por esse mundo fora.
A informação das televisões e rádios, e mesmo dos jornais, sofre também um processo de “normalização” em que tendencialmente se dá a conhecer ao público apenas uma certa visão do mundo. Começa pela preferência dadas às agências de informação ditas “de confiança” que apresentam a “sua” visão dos factos; depois vem a seleção e tratamento das notícias que são feitos sob o controlo de chefes de redação nomeados pelas administrações das empresas e, evidentemente estes não lhes querem desagradar. Por isso os próprios jornalistas estão condicionados nas apreciações que fazem sobre o mundo e, se não quiserem passar o resto da vida a fazer apontamentos sobre temas desinteressantes, devem também eles agradar à hierarquia… Portanto o jornalista deve agradar ao seu chefe de redação, que por sua vez deve agradar à administração do grupo detentor do órgão de comunicação, que por sua vez deve agradar aos responsáveis pelo poder político nacional, que por último não querem em caso algum desagradar aos “poderes superiores do mundo livre”. Neste processo de controlo da opinião pública escolhem-se também a dedo os comentadores que se pretende veiculem determinada sensibilidade e opinião… Deste modo cria-se um verdadeiro controlo da informação, feito sem necessidade de “lápis azul”. Este controlo, assente num autocontrolo dos envolvidos no processo, funciona maravilhosamente, dando-nos a ideia que recebemos uma informação imparcial e verdadeiramente livre, quando efetivamente recebemos apenas uma certa visão do mundo e dos seus factos.
Em último caso silenciam-se as vozes dissonantes vindas de dentro ou de fora do sistema, sejam os jornalistas colocados na “prateleira”, sejam os órgãos de comunicação alternativos que ousem não colaborar na difusão da “verdade oficial”. O recente bloqueio de sites russos e de muitíssimos canais “dissonantes” existentes no YouTube são um bom exemplo deste último recurso. Mas mesmo assim, por vezes o controlo do pensamento dos povos falha…
Nesse caso, quando teimosamente os povos não se entregam aos poderes instituídos, pode sempre patrocinar-se um golpe de estado feito pelos militares dos países “incumpridores”, corrompidos por dinheiro e honrarias, como aconteceu não há muito tempo no Egito e na Argélia. Se mesmo isso falhar arranja-se uma desculpa qualquer para uma invasão (mesmo que ridícula e claramente fantasiosa) como aconteceu no Iraque ou no Panamá, e coloca-se no poder alguém de confiança que não permita devaneios de verdadeira liberdade dos povos irreverentes. E em qualquer dos casos a comunicação social dos poderosos do mundo difundirá mil vezes as mentiras dos agressores até que pareçam verdades, e calará o mais possível os seus crimes.
Às vezes quase tenho saudades da censura de outros tempos, porque pelo menos sabíamos que nos estavam a mentir e isso criava homens dominados mas de pensamento livre. Hoje tenho a sensação de viver num mundo de homens que pensam ser livres, mas que na verdade têm um pensamento dominado.