Deus, a natureza, e os nossos mitos
Apesar de todos os avanços verificados na ciência no que respeita à compreensão dos sistemas naturais, ainda não nos conseguimos libertar completamente de um certo modelo nascido da ideologia “criacionista” judaico-cristã: o mundo perfeito foi obra de Deus, e conforme foi feito, assim deverá ser mantido até ao final dos tempos. Esta visão do mundo, que olha para os sistemas naturais como obras perfeitas, baseia-se numa visão estática da natureza, imaginando a existência de um estado ótimo e perfeito para cada recanto do planeta.
A mesma visão bíblica que subjaz à nossa cultura coletiva criou a artificial separação entre o ser humano e as demais espécies da “criação”. Mesmo sem que demos por isso esta visão coloca as ações humanas num patamar diferente das ações que resultam das atividades dos outros seres vivos. Daí a dualidade de critérios quando se apreciam os impactos das diferentes espécies sobre os ecossistemas. Por exemplo, quando vemos os elefantes, movidos pela fome a derrubar árvores e contribuir para a formação de uma savana mais aberta, achamos que isso é a ordem da natureza a funcionar: abrir a floresta é criar pastagens para os herbívoros, e daí comida para os predadores, etc., portanto promover a manutenção do “estado perfeito e eterno” da natureza criada por Deus. A ideologia criacionista que constitui o cenário em que se desenvolve o nosso pensamento, leva-nos a pensar que a “sábia providência” (divina ou da natureza, que nós atualmente confundimos) orienta o elefante para a perpetuação da savana “conforme ela é”, que é como quem diz, conforme nós imaginamos que seja o seu estado ótimo, perfeito, e supostamente eterno.
É escusado dizer que, se um desbaste de árvores com a mesma dimensão for feito por um criador de gado que pretende aumentar a área de pastagens para as suas vacas, isso é visto como uma perturbação intolerável que compromete o futuro do planeta. Para o bem e para o mal não conseguimos ver o ser humano apenas como uma das muitas espécies do mundo natural. O sentimento de culpa pelos muitos desmandos que temos feito ao planeta leva-nos a só ver os aspetos positivos das ações de todos os outros seres vivos, enquanto às ações dos Homem (sejam, elas quais forem) chamamos de “perturbação”, e consideramos que degradam o “equilíbrio da natureza”. É um novo mito do bom selvagem, mas agora aplicado aos seres vivos não humanos.
Da visão criacionista, que na essência nos diz que Deus fez um mundo perfeito e eterno, resulta a nossa noção de “equilíbrio” da natureza, visto sempre como a criação do tal estado “ótimo” em que supostamente a natureza atingiria o seu “clímax” de abundância e diversidade de vida. A primeira noção que é necessário desmistificar é a de “equilíbrio”, geralmente visto como um estado ideal do sistema natural de uma região, em que os fatores naturais, como geologia, solo e clima, moldam o sistema biológico até atingir o tal estado ótimo, perfeito e imutável. Na verdade, e pelo contrário, o que os sistemas naturais têm (felizmente) de mais constante e que constitui a sua melhor arma de sobrevivência e evolução, é a sua dinâmica que permite a adaptação permanente à mudança: o “desequilíbrio” é o motor da vida na terra, e é dele que resulta a evolução permanente dos seres vivos, e o aperfeiçoamento dos sistemas naturais. Se o tal “equilíbrio” alguma vez tivesse tomado conta do planeta, ainda hoje não haveria nele mais que as bactérias do início da vida na Terra.
Associada à noção edílica de “equilíbrio”, anda frequentemente a noção de “harmonia” da natureza, muito em voga, até por um certo fascínio atual por uma cultura mística orientalizante que domina parte do pensamento moderno do cidadão culto e urbano. Efetivamente, na realidade não existe na natureza qualquer tipo de “harmonia” mais ou menos divina, mas antes uma evolução que nasce de uma luta, frequentemente cruel, impiedosa e permanente entre indivíduos e espécies, no sentido da sobrevivência dos mais dominadores e o sucesso reprodutivo das suas espécies. Felizmente o mundo não anda ao sabor das ideologias humanas, mas antes pelas suas próprias leis, porque se assim não fosse nada teria evoluído até hoje.
Deste combate entre os que estão melhor e os menos bem adaptados às condições de um local em cada momento, resulta o domínio de alguns e o desaparecimento de outros, mas esse processo não conduz ao acréscimo de biodiversidade, antes pelo contrário à sua redução. Em particular, se as condições físicas do território forem as mesmas em vastas áreas, a evolução natural sem perturbações externas conduz inevitavelmente a uma monotonia paisagística e a um grande empobrecimento no que respeita à diversidade da vida e mesmo à sua abundância.
Mas o planeta vive em permanente mudança, desde logo pelas variações cósmicas que induzem alterações nos climas (mesmo as não induzidas pelas atividades humanas), pela difusão de espécies vegetais e animais (mesmo as que não são da nossa responsabilidade), pela existência de incêndios (mesmo os que não são de origem antrópica). Essas “perturbações” constantes que ocorrem no planeta (onde devemos necessariamente incluir muitas das causadas pelo Homem), se moderadas, dão até origem à multiplicação de paisagens e de espécies vivas, e necessariamente ao enriquecimento da vida na Terra.
Por muito que vos custe, esqueçam as ideias de “natureza perfeita”, “imutável”, plena de “equilíbrios” e “harmonias”, porque tudo isso não passa de imaginação moderna, que não tem qualquer correspondência com o mundo real.
Lamento se estou a destruir o vosso imaginário romântico da natureza, mas é assim ma realidade é esta.