domingo, 13 de dezembro de 2020

A escola e os meninos insolentes

Há gente que deixa uma marca no mundo que perdura muito para lá da sua própria existência ou da sua permanência em cargos de poder. Poderiam ser lembradas dezenas, centenas ou milhares de pessoas que estão nessa situação e aos quais ainda hoje devemos muito. Em plena pandemia será talvez oportuno lembrar o criador do nosso Serviço Nacional de Saúde, António Arnaut, sem o qual parte dos portugueses ficaria, como acontece mesmo em países ricos e poderosos, a morrer à porta do hospital por falta de dinheiro ou seguro de saúde para conseguir tratamento. Mas é evidente que personalidades como Mahatma Gandhi ou Nelson Mandela e muitos outros, embora mortos, continuam a contribuir ainda hoje para um mundo melhor.

Há contudo os que marcam o mundo negativamente, e também entre esses há os que o continuam a moldar mesmo depois da sua saída de cena. Esse é o caso de vários ministros da educação que tivemos no passado em Portugal, e que não só degradaram o sistema educativo enquanto exerceram o cargo, como muito pior que isso, na sua sanha aos professores e ao ensino público, criaram uma imagem do professor e da escola pública que conduziu ao seu desrespeito por parte de alguns pais e naturalmente dos seus filhos.

Quando eu era menino de escola e a minha mãe me dizia “um dia destes vou à escola para saber como é que te tens portado”, eu até tremia. Ainda que na época não cometesse mais que os pequenos pecadilhos de moço – desatenção ao discurso do professor, chegar atrasado a uma aula ou outra, uma falta esporádica para acompanhar alguma colega mais “interessante” – sabia que a escola era coisa séria e de respeito, e mesmo esses pequenos deslizes eram mal compreendidos e dificilmente perdoados pelo menos sem o ralhete da ordem. Receava também que algum professor, mesmo que por mera confusão com outro aluno, se queixasse de algo que eu nem tivesse feito, porque nesse caso a palavra do professor era “palavra de rei”, e mesmo que eu tivesse razão ninguém ma daria.

Mas alguns dirigentes políticos da área da educação entenderam que a melhor maneira de dirigir a escola pública em Portugal era espezinhar e humilhar os professores ao máximo, desacreditá-los a eles e à própria escola pública, acusá-los de laxismo, de incompetência, e sabe-se lá mais de quê. Tentaram (e conseguiram) degradar a imagem do professor com artimanhas várias usadas por quem não tem bons princípios morais, nomeadamente tentando omitir as virtudes de toda a classe e exaltando as suas insuficiência, ignorando os bons exemplos e promovendo a divulgação de tudo o que poderia desprestigiar os professores.

A partir de certo momento passou a ser comum ver noticiar na comunicação social situações de agressões por parte de alunos e de encarregados de educação a professores, e um tanto por todo o lado se percebia que o antigo prestígio e respeitabilidade da classe docente estava de rastos. A palavra do professor, adulto, por vezes já mesmo ancião, que pela sua formação escolar e profissional e pela idade, deveria merecer crédito, passou a valer menos que a palavra de um qualquer fedelho insolente que, escudado pelo desrespeito geral da sociedade dos adultos ao professor, passou a poder mesmo mentir, sabendo que a ele ninguém “levará preso”.

Hoje muitos pais deixaram de ir à escola saber como os filhos se comportam, e caso haja conflito com o professor, dar o respetivo corretivo nos meninos mal comportados. Pelo contrário passaram a ouvir apenas a versão dos filhos (quantas vezes os tais “meninos mal comportados”), e ir à escola para “dar um ralhete ao professor”.

É evidente que os que criaram este desrespeito à escola e aos seus profissionais provocaram um dano que se estende e estenderá muito para além da vigência dos seus cargos, mas é bom que nos lembremos deles porque merecem a nossa censura. Quando hoje um aluno numa turma tem um comportamento que prejudica a aprendizagem de todos os colegas e retira produtividade ao investimento público na educação, isso ainda se deve em parte ao passado, e a responsáveis políticos que mesmo em democracia dirigiram os seus subordinados como os “reizetes tirânicos” de outros tempos.

Não valerá a pena perseguir culpados, mas vale seguramente a pena corrigir atitudes. Não se consegue ter condições de aprendizagem sem que os alunos respeitem os professores (até parece ridículo ter que dizer isto), e essa tarefa de ensinar uma atitude de respeito à escola cabe aos pais, e eles são os primeiros e principais responsáveis quando as condições de funcionamento das atividades letivas numa turma se degradam. Por isso, não vão à escola saber por que motivo o professor não “controla” os alunos; antes disso perguntem-se se os vossos filhos foram ensinados a respeitar os adultos no geral, os mais velhos, e em especial os professores que dão o melhor do seu esforço para fazerem deles gente capaz e com futuro.

E os pais que ainda ensinam os bons princípios aos seus filhos devem perceber que em grande medida, se a escola não funciona melhor, isso deve-se à má educação e insolência de alguns alunos e da proteção que os pais lhes dão.

Publicado no Jornal Sudoeste de dezembro de 2020